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Leonardo Sakamoto

A imagem de um preso decapitado incomoda porque lembra que ele era gente

Leonardo Sakamoto

07/01/2014 19h41

Um colega me ligou indignado com as imagens de presos que foram decapitados pelos seus colegas no centro de detenção provisória de Pedrinhas, no Maranhão, veiculadas pela Folha de S. Paulo nesta terça (7).

Terra de ninguém, o complexo acumula dezenas de mortes violentas, esfolamentos e até mulheres entregues para serem estupradas a fim de garantir a segurança de seus familiares presos. Nos últimos dias, demonstrações de força incendiaram ônibus e queimaram passageiros até a morte na capital São Luís. Tratei disso em outro post, analisando a responsabilidade da família Sarney, que administra o Estado há décadas.

Por telefone, meu colega pensava que encontraria eco em sua indignação neste que vos escreve. Afinal, onde já se viu mostrar tais imagens na rede onde crianças podem ver? Portanto, decepcionou-se horrores ao ouvir que, neste momento, acho a veiculação não apenas correta como necessária.

Na maioria das vezes, nós jornalistas apelamos para a saída fácil da comoção através de imagens fortes, buscando atiçar a estranha atração que muitos têm por sangue, vísceras e montes de carne que já foram corpos humanos. Há toda uma linha de estudos sobre isso na sociologia e na comunicação, sobre as quais não discorrerei porque até uma morsa em coma sabe do que estou falando.

Mas situações com a de Pedrinhas são diferentes. Essas imagens são fundamentais para que nos lembremos que são pessoas os seres depositados nesses ambientes insalubres. Eles têm contas a prestar com a sociedade mas, de acordo com a legislação, isso não inclui tortura seguida de morte.

Nós, jornalistas, temos nossa parcela de culpa no processo desumanização dos presos através das histórias que contamos de forma incompleta e sensacionalista, visando a audiência. Ajudamos a desconectar os presídios do restante do tecido social, tornando-os uma espécie de limbo para onde vai quem atentou contra a sociedade. E o que acontece no limbo, fica no limbo mesmo. Afinal de contas, foram eles que pediram isso, não?

O problema é que não fica. E o ódio gestado em muitos dos presos durante esse processo bisonho de "ressocialização", por tudo o que viram e viveram, será levado para fora quando retornarem ao convívio social.

Não é a primeira vez que presos são decapitados pelos seus companheiros. Lembre-se que em reportagens sobre rebeliões, as palavras "decapitado" e "degolado" não são raras. Da mesma forma que histórias sobre cabeças que são usadas em peladas dentro de detenções como demonstração a façções rivais pipocam aqui e ali. Mas, restritas às palavras escritas ou faladas, elas não têm a mesma força que a reprodução visual e a consequente sensação de asco e perplexidade por se tratar, outrora, de um ser humano.

Sensação que tem o poder de mudar as coisas. Afinal de contas, se pessoas vivem lá e elas voltarão após pagarem por seus crimes, por que é daquele jeito?

Sim, assista ao vídeo.

E se pergunte ao final: a razão do seu incômodo é que há uma cabeça decepada de um corpo ou a cabeça decepada do corpo de um ser humano?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.