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Leonardo Sakamoto

O final da novela foi ótimo. Mas não redime anos de piadas com gays na TV

Leonardo Sakamoto

01/02/2014 10h29

A Globo tem seu milhão de defeitos, mas não é burra. Percebendo que havia demanda de uma parcela significativa da classe média e de formadores de opinião para o primeiro beijo gay entre homens em sua principal novela, a emissora construiu um caminho e autorizou esse desfecho para os personagens de Mateus Solano e Tiago Fragoso.

O beijo poderia ter aparecido em qualquer um dos capítulos do último mês, assim, de repente, passando a mensagem que um beijo entre homens poderia ser tratado de forma tão banal como entre homem e mulheres. Mas a emissora é esperta: acabou criando expectativa, transformando o momento em final de campeonato. O que, como diria um amigo, foi equivalente a uma ruptura de placas tectônicas que, há muito, já chacoalhavam. A Globo acabou criando um fato histórico que faz esquecer sua própria relutância em abordar o tema.

Afinal de contas, nada ajudou (e ainda ajuda) a forjar nossa identidade como a dramaturgia, primeiro via rádio, depois televisão.

Não tenho capacidade de dizer se Amor à Vida foi boa ou não. Mas, eu que não acompanho muito novelas, passei o mês perguntando para amigos se o beijo já tinha rolado. Não vou negar que fazia parte da torcida, pelo o que aquilo significaria e por conta da cutucada que daria à turma da Campanha "Volta Idade Média, Volta!"

As novelas são responsáveis por ajudar a moldar a forma como o brasileiro vê e entende a si mesmo e como se relaciona com os outros. As falas, o figurino, a maquiagem, a cenografia de nossa vida cotidiana são influenciados por isso – elementos que atuam no que se convencionou chamar de identidade nacional, chegando a dezenas de milhões de pessoas, em todo o território e para além dele via satélite e internet, todas as noites. E, através de suas histórias, cria modelos, critica padrões e reafirma relações de poder.

O telespectador não é passivo, claro. Mas a força desse discurso e sua onipresença tem uma influência descomunal. Ainda mais quando histórias são bem contadas e fazem sucesso. E isso é tão complexo que gera situações paradoxais: amigos que, por um lado, gostariam de ver a Globo de portas fechadas e, ao mesmo tempo, não perdem um capítulo de uma boa novela.

Não raro, a cúpula da emissora diz que as novelas são apenas um retrato da sociedade. Mas de que sociedade estamos falando? Vista de que lugar de discurso? Por qual grupo social? Não há retrato isento, a escolha do enquadramento, da composição, dos personagens de uma foto depende da intenção de cada pessoa ao mostrar uma cena. Não é diferente com as novelas. Elas trazem um discurso de reafirmação ou mudança de valores compartilhados por essa gente que mora neste canto do mundo.

É claro que novelas influenciam comportamentos e a emissora não só sabe, mas ganha muito com isso. E, mais importante do que dinheiro, o controle do processo de formação do que é considerado amálgama de um povo é uma das mais incríveis ferramentas de poder.

Mas não nos enganemos achando que, a partir de agora, o mundo será povoado por Ursinhos Carinhosos e todos serão amigos. Se, por um lado, as cenas finais de Amor à Vida souberam canalizar um sentimento de parte da sociedade, que exigia ver sua novela representando a vida real, com toda a complexidade que ela pode ter, por outro, a teledramaturgia ainda funciona como instrumento de propagação de preconceito e homofobia. E vai demorar muito tempo para deixar de ser.

Afinal de contas, tanto o beijo quanto a reconciliação com César, o pai homofóbico, ocuparam alguns minutos. Some-se a eles outros em que a relação entre os personagens de Mateus e Tiago se aproximaram e ganharam o gosto do público. Mas horas e mais horas têm sido gastas em cenas patéticas em que a homossexualidade ou a transsexualidade são vistas de forma caricata. Ou, pior, usadas como ofensas entre personagens de novelas, telefilmes ou programas humorísticos (sic).

No ano passado, um garoto de 11 anos foi chamado de "Félix" pela professora e colegas de sala, em uma escola estadual no interior de São Paulo. A partir daí, foi hostilizado pelas crianças e caiu em depressão. É claro que a professora não poderia nunca ter dito algo que magoaria um garoto de 11 anos, dando combustível para que seus colegas de classe praticassem bulling estúpido e selvagem contra ele. Não pelo personagem ser (até então) ruim, mas por ser gay.

Daí a pergunta: por que chamar alguém de gay ou lésbica ainda é uma ofensa? Sabemos que essas palavras, em uma sociedade heteronormativa e machista, são carregadas de significados negativos. O que não é aleatório, mas sim uma forma de separar o certo e o errado, o quem manda e quem obedece, ditados pelo grupo hegemônico. Mas imagine se isso não acontecesse, se a orientação sexual ou identidade de gênero de uma pessoa não fizesse diferença alguma? Porque, na prática, não faz mesmo.

Se assim fosse, caso alguém dissesse que o aluno parece um personagem que por um acaso é gay, ninguém se abalaria pela orientação sexual, mas procuraria outras características para entender o que o interlocutor quis dizer (Ele é rico? Forte? Cria pugs? É do mal? Engraçado? Um ladrão? Come caca do nariz?) Hoje, se alguém comparar um rapaz ao Toni Ramos, as pessoas pensarão o quê? Ah,  é hétero como ele? Ou: ah, é peludão que nem ele?

Já passou do momento de sairmos de nossa zona de conforto e contarmos histórias para que nossos filhos vivam sem medo. E não para serem inimigos de quem não usa o pênis para dominar o mundo.

Gostaria muito de estar vivo para chegar ao dia em que uma cena de amor envolvendo homossexuais ou transgêneros seja tão comum quanto heterossexuais ou cissexuais. Talvez, nesse mundo futuro, ninguém se sinta ofendido ou ofenda por algo que deveria suscitar o mesmo debate que o tom do branco do olho.

A mídia tem um papel importante nesse processo. Seja por conta do que ela diz, seja por conta do que deixa de dizer. O fim da novela falou algo, mas ainda um sussuro que não apaga tanto tempo de silêncio.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.