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Leonardo Sakamoto

Linchar deve ser terapêutico. Se envolver inocente então, melhor ainda

Leonardo Sakamoto

04/02/2014 01h47

Tenho lido cada vez mais casos de linchamento ou de justiciamento com as próprias mãos. O que me leva a crer que parte da população – cansada de esperar que o poder público cumpra seu papel e garanta condições mínimas de segurança – simplesmente enlouqueceu.

Abrimos mão de resolver as coisas por nós mesmos para impedir que nos devoremos. O sistema não é perfeito, longe disso, mas é o que tem para hoje.

Tempos atrás, um homem foi espancado até a morte em Olinda (PE), por moradores que o confundiram com um suspeito de estupro. De acordo com a Polícia Civil, a vítima dormia em um terreno baldio quando foi linchado. Chegou a ser levado para o hospital, mas não resistiu.

Não teve direito à defesa ou à recurso. Foi julgado e executado pela estupidez humana. Se com o devido processo legal, inocentes amargam anos de cadeia devido a erros, imagine sem ele?

O Brasil não tem pena de morte. Oficialmente, é claro. Porque muitos governos e suas polícias fingem que não sabem disso. E, não raro, turbas tratam de agir.

Em mais um caso,  outro homem foi espancado até a morte e teve a casa incendiada e o bar destruído após ser acusado de ter sido o responsável pela morte de uma adolescente em Marília (SP). A investigação, contudo, não apontou uma pessoa como a responsável. A turba idiota não quis saber e rolou, ladeira abaixo, uma bola de neve de rumores, fofocas e maldizeres, decidindo que ele era culpado. Ao final, questionado pela barbárie, um dos participantes da loucura declarou: "Se a gente fez, ele deve. Alguma coisa ele deve".

Em 2011, a internet replicou imagens bizarras de uma mulher espancando um cachorro. Para ela, todo o rigor previsto em lei, é claro. O problema é que começaram a pipocar no Twitter, Facebook, blogs e afins uma miríade de pessoas, tão dodóis quanto a dita, sugerindo linchamento em praça pública, imolação em fogueira, separação de membros por cavalos em fúria, pisoteamento por bodes chapados em ácido e até assassinato.

Outros queriam a aplicação imediata da lei de Talião, o velho olho por olho, dente por dente. Ou seja, fazer dela a mesma peteca em que transformou cretinamente o au-au. O mais interessante é que os comentários da turba foram ditos e reditos, aprofundados e revisitados, sem o menor pudor. Era sangue que o povo queria. Cada um queria lavar a alma no sangue alheio.

Mesmo para os padrões covardes do anonimato na internet (tem gente que se protege atrás de um monitor pois, na vida real, sua coragem é menor que seu mouse), esse caso me assustou na época.

Ao criticar linchamentos públicos não defendo "bandido", mas sim o pacto que os membros da sociedade fizeram entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia. Em suma, abrimos mão de resolver as coisas por nós mesmos para impedir que nos devoremos.

Para muita gente, esse tipo de decisão sumária é linda, seja feita pelas mãos da população, seja pelas do próprio Estado, ao caçar traficantes em morros cariocas ou na periferia da capital paulista.

Sabemos da dificuldade de levar alguém a julgamento e, estando lá,  conseguir uma condenação real por seus crimes. Mas creio que todos os que lutam para que Justiça não seja uma palavra bonita numa capa dura de um livro não se sentem contemplados com o passamento de figuras folclóricas como Augusto Pinochet, Suharto, Erasmo Dias, Coronel Ubiratan, e tantos outros que se foram antes de responder pelo que fizeram.

Não quero uma saída "Nicolas Marshall". Quero apenas que a Justiça funcione. E, com isso, a sociedade consiga saldar as contas consigo mesma, discutindo-se, entendendo-se.

Como já disse aqui, não era bom marido? Mau pagador de impostos? Trapaceava nas cartas? Vendia bebidas vencidas ou não lavava os copos com decência? As porções servidas no bar não eram dignas? Era avarento, invejoso, preguiçoso? Lançava-se à luxúria? Torcia para o time errado? Dava "bom dia" de dentes cerrados? – ah, os dentes cerrados… Entregava-se à bebida? Não ia à missa todos os domingos? Era econômico nos elogios? Ou, quiçá, pior? Usava mão-de-obra escrava? Violentava crianças? Maltratava animais? Pau nele.

Bandido bom é bandido morto? Para começo de conversa, diga-me com quem andas que te direi quem és. Afinal de contas, matar é solução para pau que nasce torto, que não tem jeito, morre torto. E, pior ainda na periferia, onde filho de peixe, peixinho é. Revidar é nosso direito, pois quem com ferro fere com ferro será ferido. Ou eles ou nós, pois o pior cego é aquele que não quer ver.

Já disse isso antes e volto a repetir: é gostoso desistir de pensar e, lugar-comum, ir com a manada, né?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.