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Leonardo Sakamoto

Se Miami é o Brasil que deu certo, então o Brasil deu muito errado

Leonardo Sakamoto

10/02/2014 10h46

Tenho um grupo de amigos paulistanos que diz adorar o Rio e detestar São Paulo.

Reclamam da pobreza, da falta de infraestrutura, do grande pastiche nonsense paulistano e tecem elogios intermináveis à capital dos cariocas.

Qualquer pessoa com um mínimo de bom senso concorda que, do ponto de vista natural, o Rio é insuperável. Porém, não deixa de ser fascinante como essas pessoas conseguem olhar São Paulo em sua totalidade, porque são daqui, mas resumem o Rio a uns seis quarteirões a partir da praia, do Centro ao Recreio dos Bandeirantes – copiando o padrão de algumas novelas da Globo.

Pois o Rio, graças a Deus, não é só a praia da Zona Sul, da Zona Oeste e a Lagoa. Pelo contrário, isso é apenas um pedacinho, transformado em cartão postal, de uma cidade muito maior, mais interessante, viva e diversa do que a chatice monocromática vendida aos turistas. E complexa. E pobre. E desafiadora.

Transpondo isso para o norte, tento entender o que Miami tem de tão especial que atrai levas de endinheirados brasileiros, feito aves migratórias, procurando refúgio diante das "intempéries" daqui.

Conheci a cidade no fim de janeiro, quando fui dar uma palestra em uma universidade local. E, ao contrário de outras metrópoles norte-americanas que  visitei ao longo dos anos, a primeira impressão da região metropolitana de Miami não foi das melhores. Fiz o circuito turístico convencional, o não-convencional, convivi com a elite local, tive overdose de Romero Britto. E torcia loucamente para ser esmagado por uma palmeira fake e encurtar o sofrimento.

Um cientista social amigo explicou que Miami reúne uma elite que ainda leva consigo uma herança escravagista do Sul dos Estados Unidos e membros das elites dos países da América Latina, que se refugiam em definitivo ou por temporada. E, convenhamos, muitos desses também enxergam seus países como grandes plantations que só servem para gerar dinheiro, devendo ser controladas na base do chicote diante de qualquer insurreição.

Contudo, da mesma forma que há um Rio de Janeiro para além da praia, há um entorno em Miami que não obedece à mesma lógica da parte mais endinheirada e guarda uma complexidade muito maior – que dificilmente passa pelos planos dos turistas e os autodeclarados "refugiados ricos" – que cresceram muito com a expansão dos governos à esquerda (sic) na América do Sul.

Há um mundo bem maior nos bairros de imigrantes latinos, de onde saem as pessoas que servem as demais. Que, da mesma forma que no Rio, passam despercebidas. A Miami que chega às revistas e à TVs daqui é apenas um pedacinho, transformado em cartão postal, de uma cidade muito maior, mais interessante, viva e diversa do que a chatice monocromática vendida aos turistas. E complexa. E pobre. E desafiadora.

Mas problemática também. Miami é uma das cidades com maior pobreza e desigualdade social dos Estados Unidos. Não admira, portanto, que parte de nossa elite tenha escolhido lá para viver. Sentem-se em casa.

Alto custo de vida, taxas de criminalidade maiores que do resto do país, corrupção, falta de serviços públicos e sociais, saúde de baixa qualidade, desemprego, violência ligada às disputas sobre o tráfico de drogas, violência policial desmesurada contra os mais pobres, são alguns dos elementos que foram reunidos pela revista Forbes, tempos atrás, para explicar por que a qualidade de vida por lá é ruim. Torres de concreto, aço e vidro sendo erguidas e, não muito distante, filas gigantes de pessoas buscando refeições grátis em centros de auxílio compõe o cenário.

Pouco de fala disso, contudo. A razão talvez resida no fato de que esse tipo de desgraça atinge apenas lateralmente os mais ricos em São Paulo, no Rio ou em Miami. Pois, apesar dos rumores e dos boatos amendrontadores, na maioria dos casos a violência mata negros e pobres, tanto lá quanto aqui.

Paulistanos e cariocas, entre outros, que migram para Miami e arredores dizem que estão em busca de segurança, conforto, uma clima parecido com o do Brasil e preços mais baixos que os daqui. Eles são livres para viverem o que quiserem. Não aproveitando o autoexílio para matutarem golpes e afins, podem fazer qualquer coisa.

Mas é engraçado que muitos dos que não se importavam com o país injusto para além dos altos muros de seus condomínios fechados ou dos vidros blindados de seus carros desde que se sentissem (falsamente) seguros, também não irão tomar conhecimento quando a injustiça for professada em outra língua. A pobreza de lá sofre com a mesma segregação que os bairros pobres daqui. Problemas que são invisíveis aos olhos de quem enxerga, mas não vê.

Ou você acha, realmente, que não há miséria nos Estados Unidos?

Fico, ademais, com uma certa ponta de dó dos nativos.

Parte dos brasileiros que lá se estabelecem estão ajudando a mudar os hábitos locais. Por exemplo, com a implementação de quartos de empregada em projetos de novos apartamentos – o que não era comum antes. Pois a maior parte das trabalhadoras empregadas domesticas por lá não ficam à disposição 24 horas – como podia acontecer no Brasil antes de mudanças na legislação trabalhista. Aliás, a PEC das Domésticas é outra boa razão para se refugiar.

Enfim, estamos ajudando a exportar a nossa versão contemporânea da senzala…

Há meses tenho ouvido que Miami é o Brasil que deu certo.

Contei isso a um estudante da periferia de lá durante um dedo de prosa que tive com ele. Surpreso, afirmou: cara, se Miami é o Brasil que deu certo, então seu país deu muito, muito, errado.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.