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Leonardo Sakamoto

"Mas é carnaval, vadia!" - ou quando os homens chegam ao fundo do poço

Leonardo Sakamoto

02/03/2014 10h12

Adoro carnaval de rua. E São Paulo está ótima com os blocos que polvilham a cidade.

É claro que, em meio a essa fauna exuberante, há sempre alguns com a velha tática de "conquista" da idade da pedra lascada, que consiste em "abater a presa e consumi-la ainda viva".

Juro que não sei onde enfiar a cara de vergonha quando um rapaz agarra o braço de uma moça e insiste que só o largará quando receber um beijinho. Ou quando o piolho dá um "armlove" e, insano, tenta arrastar a moça até ser contido por outros foliões – ou não. Presenciei uma cena patética e recorrente: depois de receber uma miríade de respostas desabonadoras, e sem soltar o braço de uma mulher bastante educada, um deles pediu "por favor, por favor, me dá um beijo". Cara, cadê sua dignidade? Isso é o fundo do poço! O amor próprio é o primeiro a morrer quando a alcateia está olhando.

Mas, em comparação a outros carnavais, tenho a grata impressão de que há mais pessoas conscientes e sentindo-se empoderadas para não deixar barato esse tipo de assédio sexual. Fiquei sabendo de casos em que a polícia foi acionada e pôs água no chope dos desmiolados que achavam que a bunda alheia é patrimônio público. Não sei o que aconteceu, mas torço para que o boletim de ocorrência tenha sido devidamente registrado. Vai que o dito resolve prestar um concurso público no futuro…

Em outro momento, depois de dar um tapa na cara de um sujeito que tentara lhe beijar à força, uma colega ouviu alto e bom som, quase como uma crítica social: "Mas é carnaval, vadia! Quem está aqui sozinha é porque quer isso". O sujeito aprendeu com amigos e família, viu na televisão, ouviu no rádio, que este é um momento em que as regras de convivência estão suspensas e todos procuram sexo. Para ele, a rua é um imenso Tinder offline (não que todos usem o app dessa forma, mas o desespero de alguns por lá é deprimente). Daí, quando rejeitados, expressam toda a sua perplexidade em bordões como "vagabundas", "vadias" e "piranhas".

Convivo com cenas patéticas, como essa, com uma infeliz frequência. Afinal de contas, moro em São Paulo e seria impossível não me deparar com esse universo bizarro de jovens mimados que acham que a cidade é uma extensão da tela do seu videogame, as ruas, um anexo do banheiro que usam pela manhã diariamente e o carro, uma continuidade do seu pênis. Ou complemento, o que varia de acordo com a forma com que cada um encara suas frustrações. Tempos atrás postei alguns textos sobre isso, mas tratando da noite paulistana. Que também pode ser uma várzea completa.

E como já escrevi nessas ocasiões, para esses jovens, provavelmente não se enquadram na categoria de "vagabundas" apenas suas mães e avós, que dormem o sono das santas católicas, enquanto quem é "da vida" povoa o carnaval. Porque "mulher de bem" está em casa a essa hora, não aceitaria nunca colocar um vestido acima do joelho e deixar as costas de fora, não bebe, fuma ou tem vícios detestáveis, não ama apenas por uma noite e não ri em público, escancarando os dentes a quem quer que seja. "Mulher de bem" permanece em casa para servir o "homem de bem" e estar à sua disposição como empregada, psicóloga, enfermeira, cozinheira ou objeto sexual, a qualquer hora do dia e da noite.

Por que? Porque, na sua cabeça, elas pertencem a eles. Porque assim sempre foi, é assim que se ensinou e foi aprendido. É a tradição, oras! E o discurso da tradição, muitas vezes construído de cima para baixo para manter alguém subjugado a outro não pode ser questionado. Quem ousa sair desse padrão, pode ser vítima de alguns "corretivos sociais".

Esse tipo de ataque carnavalesco é sim uma forma de violência sexual cometida por ricos e pobres. E das mais perversas porque, como tal, não são encaradas. Ainda mais quando envolvem jovens ricos, bêbados ou não. Pois estes não cometem crimes, apenas fazem "molecagens" e, portanto, fora de cogitação qualquer punição. Isso se aplica apenas a moços pobres.

E não se engane. Não é só meia dúzia de celerados. Ataques como esse traduzem o que parte da nossa sociedade machista pensa. Que uma mulher que conversa de forma simpática em um bloco de carnaval está à disposição, que uma mulher que se veste da forma como queira está à disposição, que um grupo de mulheres sem "seus homens", brincando na rua, está à disposição.

Como já trouxe aqui, o homem precisa começar a mexer na sua programação que, desde pequeno, o ensina a ser agressivo e a tratar mulheres como coisas. Raramente a ele é dado o direito que considere normal oferecer carinho e afeto em público. Bom é xingar, machucar, deixar claro quem manda e quem obedece. O contrário é coisa de mina. Ou, pior, de bicha.

E quando uma mulher não tem a garantia de que não será importunada, ofendida ou violentada, com ações ou palavras, toda a sociedade tem uma parcela de culpa. Pelo que fez. Pelo que deixou de fazer.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.