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Leonardo Sakamoto

Seria histórico ver um país desclassificado da Copa por racismo da torcida

Leonardo Sakamoto

20/06/2014 08h48

Seria fabuloso se alguma seleção perdesse os pontos que conquistou em campo ou fosse desclassificada da Copa do Mundo caso sua torcida presente no estádio apelasse para a homofobia, transfobia ou racismo.

Isso teria o potencial de repercutir em partidas de campeonatos internacionais, nacionais ou regionais em todo o planeta pelos próximos anos e décadas.

É claro que esses crimes continuariam a acontecer e muitas federações ainda fariam vistas grossas ou mesmo dariam apoio de forma velada ao preconceito.

Mas seria uma indicação de que há coisas que não podem e não devem ser toleradas.

– E se alguém usar uma camisa de outro país? (como se até uma ameba em coma não fosse capaz de descobrir isso…)
– Cadê minha liberdade de expressão?
– Ah, mas que radicalismo!
– Deixa o povo se divertir.
– É só brincadeira.
– É só futebol.

Não, não é só futebol. Porque futebol é grande demais para ser só futebol. É também espelho da sociedade que somos e farol daquele que desejamos ser. E quando futebol é palco para agressão da dignidade, não é apenas um determinado grupo, mas toda a sociedade que é atacada.

E não importa se são cem ou mil os que gritaram. Diante de homofobia e racismo, o silêncio por parte dos outros torcedores é sim conivência.

Comer banana jogada no estádio é uma reação válida para um jogador que sofreu uma agressão, mas não muda as coisas em escala maior. Pois não #somostodosmacados – lema que faz uma crítica vazia, funcionando muito mais como modinha oportunista do que ajudando na conscientização sobre as causas e as consequências do preconceito. Pelo contrário, #somostodosridículos.

Isso não ajuda a acabar com racismo, apenas coloca pó e base nele. Mas ajuda agência de publicidade a faturar um Leão em Cannes. E, transformado em hit, é ótimo para tentar vender saídas cosméticas para problemas estruturais.

Coisa que quem usa o discurso da mudança para manter tudo como sempre foi adora fazer.

Sabemos que dizer que alguém é "gay" ou "lésbica" em uma sociedade heteronormativa e machista pode carregar uma montanha de intenções negativas. O significado não é apenas a orientação sexual, mas todo um pacote de comportamentos fora do padrão que foram equivocadamente imputados a esses grupos ao longo do tempo.

O que não é aleatório, mas sim uma forma de separar o certo e o errado, o quem manda e quem obedece, ditados pelo grupo hegemônico. Como as piadas, que existem em profusão para rir de gays, travestis, negros, mulheres, terreiros, pobres, imigrantes e raramente caçoam de pessoas ricas ou famílias de comerciais de margarina na TV.

Torcedores de futebol, quando entoam coros chamando determinados jogadores de "bicha", que é um termo depreciativo, têm o intuito de transformar uma orientação sexual em xingamento. Reforçam, dessa forma, que ser "bicha" é ser ruim, ser frouxo, medroso, incapaz e tantos outros elementos acrescidos ao significado falsamente aos gays ao longo do tempo.

Nesse caso, o uso da expressão não está atacando apenas o jogador (independentemente da orientação sexual do esportista), mas toda a coletividade, pois reforça preconceitos e questiona a dignidade de determinado grupo.

Fazendo um paralelo simples: um naco da torcida gritando que um jogador negro é "negro" não é simples observação da realidade, mas quer passar um recado cuja intenção não é das melhores. Assume uma conotação diferente do significa original da palavra, com um significado bem distante de gritar que um jogador branco é "branco" em uma torcida de brancos. Pois sabemos bem que certas sociedades dá pesos diferentes a negros e brancos e que o racismo é presente em muitos lugares.

Em resumo: se não sabe brincar, não vá ao estádio. Ou, estando lá, não abra a boca.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.