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Leonardo Sakamoto

Manifestante disfarçado de vitrine tem menos chance de apanhar da polícia

Leonardo Sakamoto

24/06/2014 15h39

Tentativas de acusar integrantes do Movimento Passe Livre de serem responsáveis por ações contra bens públicos e privados ocorridos durante manifestações, como começa a se desenhar, não será ignorância e desconhecimento. Será má fé mesmo.

"Ah, mas o MPL e black blocs são a mesma coisa." Nem uma morsa com problemas de aprendizado decorrentes de deficiência nutritiva teria coragem de dizer algo assim.

O movimento, que prefere o diálogo com os adeptos da prática black bloc à sua criminalização, não pode ser acusado ou responsabilizado pelo comportamento de todos os que participam de um ato. E todos têm o direito de protestar e se manifestar.

Por muito menos, Dilma Rousseff, Geraldo Alckmin ou Fernando Haddad deveriam, então, ter que assumir legalmente mortes causadas por alimentação insuficiente, falta de saneamento básico e déficit habitacional qualitativo que grassam em São Paulo, por exemplo.

Venho dizendo que não acreditava em manifestações com dezenas de milhares de pessoas para este ano. E um dos principais motivos é o desgaste do material. Junho de 2013 foi uma catarse, gerado por tantos elementos certos na hora certa que seria de difícil reprodução no curto prazo. Até porque, após catarses, há momentos de refluxo e reorganização para consolidação de processos. Quem achava que a mesma quantidade de gente ia estar na rua o tempo todo realmente precisa, por certo, de um calmante mais forte.

Neste ano, os movimentos sociais e grupos de trabalhadores conseguiram, oportunamente e no rastro da memória dos feitos de 2013, obter conquistas jogando com o receio do poder público pela proximidade da Copa. Afinal, o sentimento de que a rua é espaço público e político para ser ocupado está mais presente do que nunca, sendo este um dos maiores legados das jornadas do ano passado. Qualquer pessoa que conhece minimamente o brasileiro sabia que, começando a Copa, a população ia também querer ver os jogos.

Jogos malditos de bom, que me trouxeram muita alegria – exceção ao meu pavoroso bolão.

Mas a principal origem da violência em manifestações, ou seja, de agressões contra seres humanos, tem sido o poder público. A política adotada pela polícia foi e é a principal razão de sangue pintar o asfalto durante manifestações. Não a única, claro, e temos um colega de profissão morto como prova disso, mas a principal. E, ironicamente, aquela cujo o dever seria o de nos proteger.

Se por aqui a vida valesse mais do que carros, vidraças e lixeiras, a investigação de quem são os agentes do poder público responsáveis por machucar e mutilar deveria ser prioritária frente a quem depredou patrimônio.

Mas como isso não é feito a contento nem para revelar e punir os açougueiros da ditadura, por que seria agora, em que feridos são um punhado de manifestantes, jornalistas e os próprios policiais que, na maioria, são pobres pagos para se machucar pelos mais ricos?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.