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Leonardo Sakamoto

Para comemorar a Copa, a PM de São Paulo lança bombas contra a população

Leonardo Sakamoto

02/07/2014 12h28

A polícia de São Paulo está aproveitando a Copa do Mundo para fazer tudo o que não faria caso estivesse sendo monitorada pela mídia e pela sociedade civil.

OK, a bem da verdade, ela faria tudo isso mesmo assim. Mas, talvez, não estaria tão à vontade quanto agora. E as repercussões de arbitrariedades iriam mais longe.

Enfim, apesar de junho já ter passado, estamos ainda nas folias de São João. E a polícia, como boa representante das tradições, trouxe as bombas.

Na noite desta terça (1), policiais lançaram bombas e dispararam balas de borracha contra pessoas que participavam de um ato/debate na praça Roosevelt, no centro da capital, sobre o direito à liberdade de expressão e pela libertação do estudante Fábio Hideki Harano e do professor Rafael Marques Lusvarghi. Ambos haviam sido presos durante um ato contra gastos da Copa e acusados de associação criminosa, incitação à violência, resistência à prisão, desacato à autoridade e porte de artefato explosivo. A polícia, contudo, não apresentou provas consistentes que embasassem as acusações até agora e a imediata soltura têm sido exigida por ativistas e defensores dos direitos humanos. A prisão também foi criticada por organizações internacionais, como a Human Rights Watch.

Como por aqui o ônus da prova é da inocência e não da culpa e mesmo quando ele é apresentado, prende-se ou lincha-se, essa situação triste infelizmente não é uma novidade.

A PM, que não contava com identificação em todas as suas fardas, revistou e anotou nomes de pessoas que participaram do ato, detiveram e agrediram advogados que estavam dando apoio ao ato e integrantes do Movimento Passe Livre, usaram de violência contra os presentes e impediram jornalistas de gravar parte da ação policial, usando para isso, de acordo com relatos dos colegas, gás de pimenta – entre outras tantas homenagens ao regime democrático.

Horas mais tarde, na madrugada desta quarta (2), a Polícia Militar disparou uma bomba de efeito moral na Vila Madalena para tentar dispersar os torcedores que transformaram as noites do bairro em balada durante a Copa. Entendo as dificuldades vividas pelos moradores e trabalhadores da região com os festejos que estão reunindo dezenas de milhares de pessoas sem que haja estrutura para recebê-los. Mas, definitivamente, não é com bomba de efeito moral que isso se resolve.

A polícia tem que ser mais fria que o cidadão em qualquer circunstância. Se a sua missão for garantir a segurança de todos, ela deveria cumprir isso evitando confrontos. Engolindo mais sapos se for necessário, afinal ela não está em guerra com a sua própria gente. Muito menos em uma competição para ver quem tem mais poder. Porque isso já deveria ser claro: não é ela, mas o povo.

E, para isso, a polícia tem que estar preparada, principalmente psicologicamente. Mas não está.

Não, policiais não são monstros alterados por radiação após testes nucleares em um atol francês no Pacífico. Não é da natureza das pessoas que decidem vestir farda (por opção ou falta dela) tornarem-se violentos. Elas aprendem. Através das ordens questionáveis que recebem de gestores públicos, no cotidiano da instituição a que pertencem (e sua herança mal resolvida), na formação profissional que tiveram, na exploração diária como trabalhadores e na internalização de sua principal missão: manter o status quo.

Investido de poder para cumprir essa missão, o policial aprende a não ser contrariado ou atacado. Sentiu-se desautorizado em um ato. Manda bomba. Viu rojões sendo jogados em sua direção. Manda bomba. Foi hostilizado por dependentes químicos? Manda bomba.

O problema não se resolve apenas com aulas de direitos humanos e sim com uma revisão sobre o papel e os métodos da polícia em nossa sociedade. Setores da polícia estão impregnados com a ideia de que nada acontecerá com eles caso não cumpram as regras. Outra parte sabe que a mesma sociedade está pouco se lixando para eles e suas famílias, pagando salários ridículos e cobrando para que se sacrifiquem em nome da "ordem".

Parte da população apoia esse tipo de comportamento policial. Gosta de se enganar e acha que se sente mais segura com o Estado agindo dessa forma. Essas pessoas são seguidoras da doutrina: "se você apanhou da polícia, é porque alguma culpa tem".

E se não se importam com inocentes que apanham ou são mandados para a cadeia, imagine então com quem é culpado. Para eles, é pena de morte e depois derrubar a casa e salgar o terreno onde a pessoa nasceu, além de esterilizar a mãe para que não gere outro meliante.

Enfim, mais do que um país sem memória e sem Justiça, temos diante de nós um Brasil conivente com a violência como principal instrumento de ação policial.

Não raro, quando critico ações policiais, páginas que defendem a corporação me prometem sessões de tortura e outros afagos. Não conseguem separar uma crítica à forma com a qual a polícia age e a necessidade de existir uma polícia treinada, capacitada e bem remunerada para fazer frente às demandas da sociedade.

Eu estou torcendo para que as imagens da praça Roosevelt e da Vila Madalena corram o mundo. Como disse um amigo, quem sabe se tornando a PM mais conhecida internacionalmente pela parte negativa de seus feitos, não faz com que ela seja repensada.

Em tempo: Tudo o que aconteceu entre terça e quarta é culpa dos malditos fãs desse teatro de pão e circo esportivo que distrai as massas e faz com que esqueçam de sua capacidade de mobilização, criando um vácuo de consciência e aprofundando a alienação com a ajuda dos interesses de corporações transnacionais, no sentido de nos transformar em gado ruminante, satisfeitos com migalhas que caem da mesa do banquete do grande capital global para o qual não fomos convidados?

Putz… (suspiro). Menos, por favor. Detesto essa mania de querer encontrar culpados onde eles não estão. Entendo a frustração de quem se dedica a uma causa importante. Mas esse tipo de discurso, que aparece aqui e ali no desespero, acaba por transferir a responsabilidade para longe do poder público.

Nos últimos 13 anos, trabalhei contra a escravidão contemporânea praticamente todos os dias. E mesmo diante da inação coletiva frente a uma das mais violentas formas de exploração do ser humano, nunca abri a boca para reclamar que havia gente gozando de seu tempo para outra coisa quando poderia estar ajudando. Não é assim que se convence o outro de nada.

Nem sempre as pessoas podem ou querem estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Afinal, elas perdem entes queridos, ficam doentes, tem problemas pessoais. Ou simplesmente estavam assistindo a um jogo.

Tenho lido reclamações na rede e visto discussões fratricidas que não contribuem em nada para o reestabelecimento da dignidade perdida. Pelo contrário, só ajudam quem não tem interesse em garantir direitos.

O que me leva a reforçar algo sempre esquecido: muitas causas são válidas e não apenas as que tomamos para nós mesmos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.