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Leonardo Sakamoto

Sociólogo vê Dilma longe do movimento social e Marina útil para a direita

Leonardo Sakamoto

05/09/2014 11h15

Marina Silva (PSB) é um "desvio necessário" para a direita voltar ao poder no Brasil e Dilma Rousseff (PT) se distanciou dos movimentos populares, mas esteve próxima do grande capital e da bancada ruralista durante seu governo.

A avaliação é do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, considerado um dos mais importantes intelectuais da esquerda na atualidade. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal, e professor da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, e da Universidade de Warwick, no Reino Unido, possui uma extensa produção sobre participação social, modelos de democracia e concepções de direitos humanos. Ligado a movimentos sociais brasileiros e globais, Boaventura veio ao Brasil lançar seu novo livro (O direito dos oprimidos, Editora Cortez) e deu entrevista ao UOL.

Segundo Boaventura, a hegemonia do pensamento oligárquico de direita não consegue voltar ao governo sem utilizar alguém que tenha perfil de esquerda no país. Para ele, Marina Silva pode ser o "desvio necessário" para que isso aconteça. "Isso não quer dizer que Marina Silva possa ser instrumentalizada de uma maneira fácil por quem quer que seja. É uma mulher forte, lúcida, inteligente. Mas está em um jogo e tenta mostrar que o seu passado ecologista não tinha que colocar medo ao grande capital. Porque não é o seu partido que a sustenta, mas muitos interesses do capital, que estariam contra o que era a Marina Silva de alguns anos."

Ao mesmo tempo, analisa que Dilma recuou na relação com os movimentos populares. "Se essa distância fosse também calculada em relação à bancada ruralista e aos poderes dominantes, poderíamos dizer que seria um estilo de autonomia do Estado. Mas o que se viu foi uma assimetria preocupante sobretudo para um partido que assentou efetivamente na promoção das classes populares."

Ele também criticou o uso da ideia de "democracia de alta intensidade", construída por ele, na campanha eleitoral brasileira.

"O conceito não pode ser usado oportunisticamente. Não é apenas acrescentar tecnologias de informação e comunicação à democracia participativa como parece ser isso que retiro do programa de Marina Silva que li com cuidado", afirma Boaventura. "Não vejo no programa nada que vá no sentido de uma revolução democrática, que obriga a uma grande reforma do Estado."

Ele explica que uma "democracia de alta intensidade" tem que ser anticapitalista, anticolonialista e antipatriarcal, com a participação real e na proporção em que aparecem na sociedade, de mulheres, negros, povos tradicionais, trabalhadores, entre outros. "Não vejo em nenhum candidato a ideia de uma democracia de alta intensidade", analisa.

Para que uma real integração entre democracia representativa e participação direta seja possível, ele defende a eleição de uma Assembleia Constituinte para uma reforma política e eleitoral, livre e soberana. "Porque, com o Congresso que está aí, isso não é possível."

Outros temas tratados na entrevista:

Evangelismo conservador: Temos porcentagens preocupantes de brasileiros que acreditam que o mundo foi criado em sete dias e portanto tomam literalmente a bíblia. E daí deduzem uma série de politicas concretas.

Nos Estados Unidos, as consequências disso são visíveis: médicos que fazem aborto legal sendo perseguidos e suas clínicas recebendo bombas, pesquisadores que atuam com células-tronco sofrendo ameaças.

O evangelismo conservador anda de mãos dadas com a teologia da prosperidade. Nele, a benção de Deus se sinaliza fundamentalmente por quão rico e quanta riqueza consigo acumular. Pautas como privatização, liberalização, iniciativa privada e Estado mínimo acabam fazendo parte desse debate. Quem é mais rico, é moralmente superior. Essa religiosa conservadora é extremamente perigosa e está a destruir a diversidade.

Temos países muito desiguais e com muita discriminação em que o discurso religioso entra não com o intuito de iluminar mas, pelo contrário, de os absorver e por, muitas vezes, resignar essas situações de discriminação. É uma teologia política conservadora e não uma teologia da libertação.

Se hoje olharmos para os movimentos sociais no Brasil, vemos que, historicamente, houve uma presença religiosa progressista. O que ajudou a termos uma sociedade mais inclusiva, plural, diversa. Hoje, a teologia conservadora procura ratificar o status quo e colocar em risco essas conquistas obtidas no passado.

Crise na democracia: A tecnologia da informação e da comunicação é muito boa, mas só ela não resolve. Quando há uma grande inundação, a primeira coisa que falta é água potável. Hoje, no mar de informação, temos falta de informação potável. A tecnologia por si não me dá potabilidade da informação. Tem que ter critério político.

Quanto mais estratégica é a informação, menos ela é processada pela democracia. As coisas verdadeiramente importantes não passam pelo Congresso ou por nenhuma instancia transparente. Antes o opaco é o que não se via. Hoje é essa inundação de informação que cria a opacidade. Nesse sentido, corremos o risco de viver em sociedade politicamente democráticas, mas socialmente fascistas.

É preciso uma reforma política grande. Temos o que chamo de "patologia da representação": os representados não se sentem representados pelos seus representantes. Porque há uma desconexão total. É só ver a porcentagem de brancos na sociedade brasileira e a porcentagem de brancos e negros na Câmara dos Deputados. De mulheres também.

A reforma do sistema politico vai obrigar uma maior integração entre a democracia representativa e a participativa. Mecanismos de participação têm funcionado bem a nível municipal mas não estadual e federal. Os investimentos da Copa, por exemplo, não passaram por nenhum mecanismo de deliberação democrática. Como não temos esses instrumentos de democracia participativa, o cidadão acredita que só pode intervir na política a cada quatro anos.

Estado forte: No século 19, a democracia era uma coisa de elite. Um século depois a democracia incorporou demandas sociais importantes e passou a ser um campo de disputa. Para garantir esses direitos, é necessário um Estado forte. Mas não qualquer Estado forte, porque uma ditadura é um Estado forte. Mas um Estado democraticamente forte, com poder para regular essas relações sociais.

Mídia: A mídia é, hoje, o grande partido de oposição contra qualquer governo progressista. Ela tem a agenda de seus próprios donos.A questão da regulação do setor não é cortar a liberdade de expressão. É impedir que alguns que têm o acesso a toda a liberdade de expressão silenciem outras expressões. E portanto que um atentado contra a liberdade de expressão continue ocorrendo. Quem está a investir em comunicação não pode estar a investir em capital financeiro, em outras áreas que podem criar conflitos de interesse invisíveis.

Cidadania pelo consumo: A integração dessa nova classe média se deu mais pelo consumo do que pela cidadania. O acesso aos serviços públicos foi ampliado, mas sem investimento correspondente em sua qualidade. Ampliou-se o sistema universitário de uma maneira extraordinária, por exemplo, mas o investimento não foi suficiente em termos de salários e de infraestrutura, o que cria um descontentamento grande. Ao mesmo tempo, conseguimos incluir outras populações dentro das universidades, mas para aprender as mesmas coisas que anteriormente. Não eliminamos os preconceitos na educação.

"Dronificação da política: Estamos em um processo de "dronificação da política". Um operador controla um drone militar de seu próprio país, à distância. Quando se derruba um drone, o operador continua lá, não é atingido. Essa mesma ideia de um poder invulnerável, que tem uma dimensão tão sobre-humana, que o cidadão comum se pergunta como vou lutar com isso, também aparece na política.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.