Topo

Leonardo Sakamoto

Quando crescer, eu quero ser a mulher do comercial da TV

Leonardo Sakamoto

01/10/2014 17h10

Gosto de assistir a comerciais de TV e, através deles, tentar compreender como as empresas nos enxergam, como elas avaliam quem somos e, ao final, dizem como gostariam que fossemos.

Tempos atrás, em um momento de iluminação na madrugada, finalmente consegui entender quem é a mulher brasileira com base nessas propagandas. Discuti sobre isso neste espaço. Agora, resolvi atualizar esse perfil com base em um anúncio que me deixou um tanto quanto chocado. Ele faria sentido na sociedade de 1950, não na de 2014. Vai ver, a equipe dos colegas publicitários estava com preguiça e decidiu reciclar algo daquela época.

A mulher brasileira dos comerciais de TV é simpática, meiga, solícita. Independente, mas multitarefa. Não é que não queira a ajuda de ninguém – ela não precisa. Faz questão de trabalhar o dia inteiro e, depois, chegar em casa e cuidar de tudo e dos filhos.

E, se o marido aguentar, ainda está disponível para muito, muito sexo selvagem. Ela acha que mulher que reclama de lingerie apertada não é mulher.

Gosta de fazer uma boa faxina. Daquelas pesadas, que incluem tirar gordura do fogão, a sujeira do chão e o pó que se esconde nos vãos, desde que os produtos usados não irritem muito a pele. E que o sachê para tirar odor do vaso sanitário possa ser trocado facilmente. Afinal de contas, hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás! O que ela mais ama ganhar de presente de Dia das Mães é uma geladeira e um aspirador de pó.

E o momento em que a mulher brasileira prefere dar a geral na casa é quando os filhos clamam por atenção, querendo a velha e boa papinha de nenê com frango ou a fralda nova que absorve o xixi antes mesmo dele ser feito. Ou no momento exato em que a horda composta pelos amigos do rebento mais velho resolve vir comer cachorro-quente e sanduíche de peito de peru ao mesmo tempo. É sempre ela que faz questão de abrir garrafas e mais garrafas de refrigerante.

Até porque, como sabemos, é raro homem aparecendo na cozinha em comercial. Ele só vai para preparar pratos especiais, refinados, gourmet. No dia a dia, o reino das panelas é das mulheres. Para ele, há outras tarefas: aparece com mais frequência, por exemplo, em anúncios de TVs LED de 52″ e de carros que não rodam, voam – deixando claro que tamanho e potência são o que importam de verdade.

Ou nos de cerveja, como se o consumo de álcool fosse algo apartado por gênero. Aí sim, ressurge a brasileira, pelada, esbanjando sensualidade, disponível para qualquer coisa, quase pedindo: "vem cá e me beba inteira".

Voltemos à mulher que acabou de lavar a louça com um detergente que transforma pratos em espelhos e colocar a roupa do marido do futebol na máquina de lavar com um sabão que deixa tudo muito branco. Ela, que nasceu com um cabelo maravilhosamente cacheado, aproveitou o tempinho livre que o uso de produtos de limpeza avançados lhe concedeu e o alisa inteiro com uma das incríveis chapinhas anunciadas no canal a cabo. Com íons jupterianos ou coisa do gênero.

Quer ficar igual às amigas, que são iguais às mulheres dos comerciais de TV, que são iguais às modelos, que atendem a um parâmetro traçado por uma elite de outro continente, de que liso é bom, curvo é uma droga. Até porque, como a vida nos ensinou, branco é bom, negro é uma droga.

Ela ainda aproveita alguns segundos para untar a barriga com gel emagrecedor, tomar alguns comprimidos feitos com esterco de besouro caolho da Serra da Mantiqueira que prometem emagrecer e depilar a perna com emplastos coloridos que ninguém provou que não contribuem com o desenvolvimento de câncer de pele.

Essa mulher brasileira na TV não menstrua. E, se menstrua, não fica inchada, nunca passa por alguma alteração de humor e nem tem dor de cabeça. Nesse período, ela adora andar saltitante pela rua, pois o melhor absorvente interno do mundo lhe deu a possibilidade. Não só isso: essa mulher da propaganda de absorvente é nobre, pois menstrua azul.

Ao final do dia, está cansada, mas sabe como o marido fica depois de tanto comercial de cerveja. Quer agradá-lo. Coitado, trabalha tanto, né?

Então, corre ao banheiro e esconde o tempo, o cansaço e a idade com maquiagens mil. Diante do espelho, ao ver outra mulher que não ela, uma mulher que ela tem certeza que viu dia desses na TV, sorri.

Daí, respira fundo para poder aceitar a vida que os comerciais lhe garantiram ser o modelo de felicidade. Deita-se na cama, enquanto espera ele terminar. E viaja para bem longe. Sozinha.

E pensa consigo mesma: pena que antidepressivo não aparece em comercial de TV.

Ainda.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.