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Leonardo Sakamoto

Se magistrado for Deus, melhor o cristianismo procurar outra divindade

Leonardo Sakamoto

05/11/2014 14h12

Adorei a vaquinha que foi lançada para bancar a indenização de R$ 5 mil que uma agente da Operação Lei Seca terá que pagar ao juiz João Carlos de Souza Corrêa.

Creio que a maioria de vocês ficou sabendo da história, mas Luciana Silva Tamburini foi condenada por danos morais pela 36a Vara Cível do Rio de Janeiro por ter agido com "abuso de poder" junto ao digníssimo em uma blitz, em 2011, quando João foi parado, sem carteira de habilitação e outros documentos e com o carro sem placa.

Ela cuspiu no carro do sujeito? Não. Xingou sua progenitora? Não. Fez baleia branca na cara do magistrado? Não. Diante do fato dele ter se identificado como juiz (o que foi interpretado como uma tentativa de carteirada), disse apenas uma verdade: "era juiz, mas não deus".

O veículo foi rebocado. E ela chegou a receber dele voz de prisão por desacato do indignado meritíssimo.

Na decisão de segunda instância que confirmou a condenação, o desembargador José Carlos Paes disse: "Ao apregoar que o demandado era juiz, mas não Deus, a agente de trânsito zombou do cargo por ele ocupado, bem como do que a função representa na sociedade".

Apesar de fortes indícios demonstrarem que a tese não se sustenta, há juízes, desembargadores e ministros que acreditam serem uma divindade.

Aliás, se juiz é uma imagem e semelhança de Jeová, seria melhor o cristianismo procurar outro deus para adorar.

Por que um deus diria isso?

"Ora, a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem (…) O mundo é masculino! A ideia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!"(…) "Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões." (…)"A vingar esse conjunto de regras diabólicas, a família estará em perigo, como inclusive já está: desfacelada, os filhos sem regras, porque sem pais; o homem subjugado."

(Juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues, em uma sentença sobre a Lei Maria da Penha.)

Ou isso?

"Quem se recorda da Copa do Mundo de 1970, quem viu o escrete de ouro jogando (…) jamais conceberia um ídolo ser homossexual." (…)"Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas forme seu time e inicie uma Federação". (…)"Cada um na sua área, cada macaco no seu galho, cada galo em seu terreiro, cada rei em seu baralho. É assim que penso."

(Juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, em um caso sobre homofobia no futebol.)

Um naco da sociedade acredita que o Judiciário é uma fonte inesgotável de sabedoria, quase um oráculo. Um guru que interpreta imparcialmente a letra da lei, como se isso fosse possível, deixando de lado todas as suas crenças sobre o mundo e sobre si mesmo.

O pior é que caminhamos cada vez mais para a judicialização das relações sociais, terceirando para magistrados decisões sobre nossa vida ao invés de buscar, antes, o diálogo e a tolerância em casos que não afetam realmente a integridade pessoal.

Juízes passam por duros processos de seleção. E, é claro, isso demanda pesado investimento em educação formal – que, na maioria das vezes, só famílias com recursos podem prover. Portanto, a sociedade brasileira não está representada na magistratura por uma razão simples: parte significativa dos juízes é elite desde o berço.

E, entre essa elite, há os que sempre estiveram em uma bolha, sem a vivência comum da sociedade, sem a tentativa do conhecimento do outro, sem a busca por compreender as diferenças e entender o que significam os espírito das leis em seu tempo. O mundo lhes serviu até que alcançassem um cargo que permitisse trabalhar, primeiro, pela manutenção do status quo, depois pela garantia de direitos.

Estamos acostumados a criticar prefeitos, governadores, presidentes, vereadores, deputados e senadores mas, não raro, poupamos juízes, desembargadores e ministros. Fascinante que uma das consequências de atribuir sabedoria sobrenatural à toga é de que o Judiciário, por falta de pressão e controle externos, é o menos transparente dos poderes.

A vaquinha já havia arrecadado mais de R$ 11 mil, às 13h30 desta quarta (5). Para contribuir, clique aqui.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.