O que nos une como jornalistas não é a ética, mas o medo de ser demitido
Chamam-se "passaralhos" as demissões coletivas que ocorrem em empresas jornalísticas, normalmente por necessidade de corte de custos.
A ansiedade e o medo provocado pela sombra dessa ave nos profissionais de imprensa representa uma delicada forma de tortura: você nunca sabe quando o golpe vem. Mas ele sempre vem.
E, democraticamente, pode pegar a todos: novos e experientes, especialistas e generalistas, casados e solteiros, os que recebem altos salários e os que ganham abaixo do piso, alternativos e tradicionais, conservadores e progressistas, "governistas chapa-branca" e "oposição golpista".
O financiamento do jornalismo convencional via publicidade está encolhendo e, com ele, o tamanho das redações – processo que pode ser acelerado por erros na gestão dos veículos. E não está ocorrendo uma transferência desses recursos para as versões digitais desses veículos que possibilitasse a migração dos profissionais para outra plataforma. Afinal, para que investir em banner se posso atingir meu leitor cirurgicamente via redes sociais e programas de busca?
Alternativas existem, saídas estão sendo construídas, mas haverá muita tentativa e erro até lá. Jornais e revistas vão morrer no meio dessa transição do modelo de negócio do jornalismo. Outros, com sorte, farão uma mudança digna para a internet. Enquanto isso, veículos novos vão surgir, pensados para plataformas multimídias e interativas, a maioria deles menores e mais ágeis do ponto de vista organizacional, outros sem fins lucrativos. Mas não necessariamente com a mesma estrutura que possibilita proteção jurídica e apoio logístico que as organizações tradicionais de hoje.
O problema é que, neste momento "nem lá, nem cá", quem não nasceu em berço de ouro ou não foi apadrinhado por mecenas, empresas e governos e, ao mesmo tempo, não quer ou pode empreender, continua tendo contas a pagar. E, portanto, medo da incerteza.
Uns dizem que dos escombros do atual jornalismo sairá uma bela fênix. Outros que será um cenário pós-apocalíptico, com grupos de justiceiros promovendo o caos, feito Mad Max. Neste momento, não me interessa o prognóstico mas, com base no atual diagnóstico, entender o que fazer já para minimizar os impactos com o empregos que existem hoje. Ou pelo menos possibilitar uma passagem o mais suave possível.
Os motivos dos "ajustes" vão desde a justa necessidade de sobrevivência do próprio veículo (fazer bom jornalismo pode ser caro), passando pelos impactos causados pela internet e/ou pela má gestão até a garantia da lucratividade da empresa. Para não ser leviano, passaralhos precisam ser analisados individualmente e, por isso, este não é um texto sobre uma empresa ou outra.
Aliás, não acho que seja o caso de demonizar patrões nesse processo porque seria ignóbil pensar que donos de veículos que registraram baixas ao longo do ano ficaram felizes com isso. Pelo contrário, cortar na carne é sempre uma decisão complicada, pois o maior patrimônio de uma empresa jornalística é a sua equipe.
Neste ano, com Copa do Mundo no Brasil e caóticas eleições, exigiu-se muito do trabalho de profissionais da imprensa. Paralelamente, perdi as contas do número de passaralhos envolvendo veículos tradicionais e alternativos e, posteriormente, de telefonemas, serenos ou desesperados, de colegas pedindo ajuda para encontrar um novo emprego ou frilas. Dívidas, filhos pequenos, mês que não fecha, enfim, vida real.
Muita gente adora dizer que sem bom jornalismo, profissional ou não, não se mantém uma democracia. Só que a base do jornalismo é a reportagem e não o colunismo. E são poucos os atores sociais que querem financiar a produção de coberturas aprofundadas, daquelas que custam muito tempo e recurso. Nessa hora, me salta à mente um dos versos do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles: Todos querem a liberdade, mas quem por ela trabalha?
Creio que a expressão mais frequente que ouvi, neste ano, dos colegas jornalistas diante da situação da profissão foi "sentimento de impotência". Frente às incertezas de sua própria condição e das mudanças estruturais – que não são monopólio do jornalismo, claro, mas que em nosso caso questionam a própria natureza da atividade. Lembrando também que o jornalismo moderno tem uma relação carnal com o modelo de democracia representativa que, por sua vez, também vive uma crise.
Talvez por saber que não há o que ser feito, uma vez que todos conhecem a situação financeira dos veículos de comunicação, grandes e pequenos; talvez pelo medo de também perder o emprego; talvez pela lenta e contínua acomodação ou degradação da profissão; talvez por que o prazo do fechamento não deixa; talvez porque o cansaço ao final do dia seja mais forte; talvez por algo maior que isso – ou por nada disso.
Muita gente, entre os modernos e os antigos, não se reconhece como classe trabalhadora. Devido às peculiaridades da profissão, desenvolvemos laços com o poder e convivemos em seus espaços sociais e culturais, seduzidos por ele ou enganados por nós mesmos. Só percebemos que essa situação não é real e que também somos operários, transformando fato em notícia, quando nossos serviços não são mais possíveis de serem remunerados em determinado lugar.
Nesse sentido, um amigo que sentiu um passaralho, meses atrás, confessou que o pior não foi a demissão, que até comprendeu as razões. Para ele, foi a falta de transparência, informação e diálogo, que ajudou a alimentar a ansiedade descrita no início deste texto. Elementos que não foram garantidos por seus patrões, mas que também não foram exigidos por parte dele e dos colegas. "Se fossemos comunicadores, isso seria preocupante", ironiza.
Em um começo de século com ares de aprofundamento antropofágico, talvez a melhor resposta a tudo isso esteja está na modernidade de Oswald de Andrade: "Só o passaralho nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente".
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