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Leonardo Sakamoto

Vovô ainda leva flores. Todos os dias

Leonardo Sakamoto

27/12/2014 18h38

Recebi a ligação de um amigo que, por conta dessas brincadeiras da vida, foi criado pela avó.

Contou-me que, agora, ela se lembra dele com a mesma frequência com a qual o esquece.

E, quando lembra, dá as mesmas broncas e conselhos de quando era menino – como se assim ainda fosse.

Compartilho com ele e com todos e todas que tiveram avós e avôs que foram desaparecendo aos poucos e diante de seus olhos, cinco microcontos que escrevi, tempos atrás. É um abraço e minha forma de dizer que os entendo perfeitamente, sugerindo, muito humildemente, que aproveite os mais velhos enquanto é tempo.

***

Primeiro, foram os nomes dos netos. Depois, a literatura que amava. E ela foi se despindo na frente de todos. Foi estranho, mas o Alzheimer lhe concedeu o direito a uma só lembrança. O que é forte o suficiente para vencer o vazio? Para ela, o primeiro encontro com o homem de sua vida. Passava as tardes na janela, esperando. "Ele vem", dizia a todos… Então o marido, companheiro de décadas, passou a lhe trazer margaridas para cortejá-la. Até que, numa noite, ela disse, colocando as mãos em seus ombros: "Não precisa mais. Já me conquistou". E dormiu um sono longo.

Vovô ainda leva flores. Todos os dias.

***

Vó curava os dias tristes com bolinhos de chuva e esticava as manhãs leves com broas de milho. Cair da bicicleta dava em galinhada; perder um dente, em sorvete de nata. E para dor de saudade, vó? Ela sabia que, para isso, não havia receita, pois durante anos tentara cozinhar a perda do vô. E jogou o soluçar do neto no ombro, tirando o amargo de sua boca e enganando o vazio.

***

Fazedor de arco-íris, seu avô dizia que era dele a tarefa de pintar os céus depois de tempestades. Ao fim de um aguaceiro, ele se refugiava no velho moinho, girava a roda d'água e uma curva colorida se abria no horizonte. Orgulho. Quem além dela tinha avô poderoso assim? Até que, em uma tarde sem nuvens, o coração do velho desabou sobre a plantação. Ela, em prantos, correu para o moinho a fim de pintar para ele. Girou, girou, girou, mas nada. Vendo tristeza tão sincera, o céu se encolheu e chorou. E o mais belo arco-íris que o mundo já viu se fez.

***

Tinha apenas um vestido, de chita, que ganhara do padrinho. Pouco importava que seu corpo sumisse nele. Ao vesti-lo, sentia-se a mulher mais linda do mundo. E, por isso, a mais linda se tornava. O seu brilho ofuscou as outras meninas da vila, que de tocaia, rasgaram-no e o lançaram às cabras logo na véspera do São José. Chorou tanto que o umbu floresceu. Sua vó, então, colheu as flores e as costurou pacientemente na forma de um belo vestido branco. À noite, a festa sem lua iluminou-se com ela – que dançou sob a benção das estrelas, sorrindo até a última pétala cair.

***

Com olhar severo e sem pressa, ela mexia o caldeirão de ferro fundido. De dentro, um cheiro doce e perfumado corria a casa e tomava o rumo do mundo. Horas depois, quando a lenha já era cinza e o sol se retirava, dava-se por satisfeita. Mas dentro da panela, não havia mais nada. "Tava cozinhando, não. Tava é botando ordem nas coisas." Todos riam dela. Até que vó morreu. Então, choveu três meses. E a cidade desapareceu embaixo d'água para nunca mais voltar.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.