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Leonardo Sakamoto

É preciso "coragem" para chamar uma mulher de "vaca" da janela do prédio

Leonardo Sakamoto

08/03/2015 21h40

Durante o pronunciamento de Dilma Rousseff, em cadeia nacional de rádio e TV, na noite deste domingo (8), um panelaço foi ouvido em várias cidades brasileiras. Em São Paulo, o barulho foi grande em bairros ricos como Higienópolis, Jardins, Itaim Bibi, Perdizes, Vila Madalena, Morumbi. Por outro lado, menos se ouviu em bairros mais pobres, como Capão Redondo, Itaim Paulista, Cidade Tiradentes e Grajaú, mostrando que a periferia ainda não entrou forte nos protestos.

Particularmente, não gostei do pronunciamento. Achei que não respondeu às principais indagações sobre a condução do seu governo. E não estou falando apenas dos casos de corrupção, mas sim de questões de manutenção de direitos trabalhistas e do desenvolvimento econômico.

E, particularmente, não tenho nada contra vaias (a menos que sejam durante a execução de hinos nacionais de outros países em jogos de Copa do Mundo – aquele episódio foi ridículo…). Também não tenho nada contra panelas que estrilam (só espero que se forem de teflon, que tenham usado colher-de-pau, porque risca).

Essas coisas fazem parte da democracia. E políticos, se gostam de elogios, devem aprender a conviver com críticas.

Mas é preciso muita coragem para gritar a plenos pulmões que alguém é "vaca" da janela do apartamento, com todos os vizinhos e os transeuntes na rua olhando.

Coragem ou a certeza de que nada vai acontecer. Porque talvez a pessoa saiba que vivemos em uma sociedade misógina, que premia esse tipo de comportamento. Uma sociedade que é incapaz de fazer críticas ou demonstrar insatisfação e indignação sem apelar para questões de gênero.

Chamar de "vaca" não é fazer uma análise da honestidade e competência de alguém que ocupa um cargo público e sim uma forma machista de depreciar uma mulher simplesmente por ser mulher. De colocá-la no seu "devido lugar", que é fora da política institucional.

E isso vale para qualquer mulher. De Luciana Genro à Roseana Sarney, de Marina Silva à Kátia Abreu. Pois a origem da truculência masculina percorre todo o espectro político. Da esquerda à direita.

O significado de "vaca" que os ignóbeis usam não remete aos simpáticos ruminantes. Se assim fosse, seria apenas especismo da minha parte reclamar da comparação. Mas o termo, neste caso, quer rotular através de uma crítica moral sobre um comportamento sexual atrelado a um gênero. Tanto que a versão masculina ("touro") não é depreciativo, pelo contrario.

É meio ridículo explicar a adultos que mulheres, em nenhuma hipótese, devem ser criticadas por esse ponto de vista. Ou chamadas de "prostitutas" como xingamento genérico a qualquer comportamento em desacordo com o que se "espera" de uma "mulher de bem". E que prostitutas continuem a serem reduzidas a xingamento e não tratadas com o mesmo respeito despendido a qualquer outra trabalhadora. E que alguém ainda tenha a cara-de-pau de usar a expressão "mulher de bem". E que eu esteja escrevendo um texto sobre isso a esta hora, em um domingo à noite, quando poderia estar assistindo aos gols da rodada.

Fico imaginando se alguns dos marmanjos e mesmo das mulheres que gritaram "vaca" da janela de casa, celebraram com suas mães, esposa e amigas, algumas horas antes, o Dia Internacional das Mulheres, comemorado neste 8 de março.

A quantidade de mulheres na política, independentemente de sua orientação ideológica, infelizmente é pequena. Mas elas também estão sub-representadas como CEOs, executivas, gerentes, síndicas de condomínios. Isso sem falar das chefias de redação. E o Judiciário ainda transpira machismo, haja visto as interpretações distorcidas proferidas por arautos da masculinidade de toga sobre a Lei Maria da Penha.

Como já contei aqui neste espaço, nas manifestações de junho de 2013, abordei educadamente um rapaz que carregava um cartaz chamando Dilma de "vaca". Pedi desculpas pela intromissão, mas expliquei que o protesto dele seria muito mais legítimo se ele usasse um termo para criticá-la que não fosse tão machista. Poderia questionar a idoneidade, a moral, a competência, a capacidade para o cargo e um sem número de coisas. Ele entendeu, ficou sem graça e disse que tinha escolhido só porque rimava com o restante da ideia.

Contudo, um senhor mais velho que o acompanhava afirmou que ela era mesmo uma "vaca". Ele disse que sabia disso porque que era professor universitário de história e havia estudado a vida de Dilma e podia atestar que ela é uma "vaca" (WTF?). As novas gerações até tentam, mas o ranço de naftalina insiste em manter os direitos como artigo de luxo.

É o que eu já disse aqui antes: todos nós, homens, de esquerda, de direita, de centro, somos sim inimigos até que sejamos educados para o contrário. E tendo em vista a formação que tivemos, é um longo caminho até alcançarmos um mínimo de decência para com o sexo oposto. E não confundir o justo protesto com o bizarro machismo.

(E para quem tem dificuldade estrutural com interpretação de texto, o gabarito: isso não é uma defesa da Dilma, isso é uma crítica ao machismo.)

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.