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Leonardo Sakamoto

Por que algumas fotos comovem mais do que outras?

Leonardo Sakamoto

05/09/2015 12h52

A foto do menininho sírio, afogado e morto em uma praia da Turquia, foi transformada em símbolo da crise humanitária que envolve diretamente três continentes pelo que ela tem de comum e não de especial: poderia ser o filho de qualquer um com suas roupas e seu corte de cabelo comuns. Mais do que isso: de bruços e com a face voltada para a areia, ele não tinha um rosto. E, portanto, representava os rostos de muitas crianças.

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Uma foto como essa, lançada em meio à necessidade de chamar atenção a um tema, com forte carga simbólica da desgraça que está em curso e entregue à sociedade de forma incompleta (sem rosto) para ser preenchida pelos que a consumirem com fragmentos de seus próprio registros pessoais são raras. E, por isso, não podem ser desperdiçadas. Devem ser usadas para chocar, mobilizar, agir.

Enquanto isso, fotos envolvendo crianças em situações tristes são muitas e circulam no dia a dia em todo o mundo. Algumas ganham destaque, por conta dos elementos que comentei acima ou quando governos decidem transforma-las em peças publicitárias. Outras, não. Da mesma forma, o desaparecimento de Amarildo, no Rio de Janeiro, se tornou simbólico pelo contexto em que aconteceu, logo após as grandes manifestações de 2013, que também reclamaram da violência policial. Mesmo que ele tenha sido apenas um diante de tantos desaparecimentos que são colocados na conta da polícia.

Soldado turco olha corpo de menino sírio, morto na tentativa de travessia para a Grécia (Fotos: Nilufer Demir/Reuters)

Se a criança fosse negra, teria tido o mesmo impacto? Fotos com meninos e meninas em pobreza extrema na África já circularam o mundo e foram fundamentais para a conscientização da população e para a tomada de certas ações. Mas caíram no esquecimento, da mesma forma que a imagem do menino na praia também vai cair.

Neste caso em especial, o fato da cor de pele do rapaz ser a mesma da maioria da Europa contribui com o processo de empatia local. Após ela ganhar o mundo, o governo inglês aceitou receber uma parte dos refugiados. A questão étnica, claro, é um dos elementos do reconhecimento do outro como um igual, mas não o único.

Há fotos de crianças trabalhando em bordeis no Brasil, sendo escravizadas na produção de tapetes no Paquistão ou tornadas soldados-mirins por grupos paramilitares em Gana. Tiveram maior ou menos apelo e capacidade de mobilização dependendo do quanto geram empatia com a população e a elite local ou global, de quem as chancela e as distribui e do momento em que ganham o mundo. Pois, a meu ver, para poderem "surfar" e atingir mais gente, precisam surgir como "argumentos de comprovação de denúncia" e não como "propostas de pauta em si".

A indignação por uma problema social nunca exclui a indignação por outro e jogar para baixo do tapete os incômodos que também dizem respeito a todos nós não fazem eles desaparecerem. Sei que não é fácil criar as condições para que algo desperte compaixão e, de lá, ação. Mas se não puder ser pela emoção, que nos dediquemos ao outro pela lógica e a razão.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.