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Leonardo Sakamoto

Dois olhos esquerdos: o Estado que rouba o futuro e a visão das crianças

Leonardo Sakamoto

05/05/2016 07h59

"O médico disse que o olho do meu filho estava triturado e que não tinha o que fazer." Vanessa até pediu a Deus, mas já era tarde. O poder público paulista havia roubado o olho esquerdo do rapaz de 12 anos através de uma ação desastrosa de sua polícia.

Sob a justificativa de reprimir um baile funk que acontecia perto da favela Marcone, na Zona Norte do município de São Paulo, a PM lançou balas de borrachas e bombas de fragmentação (a quem as chame de bombas de efeito moral) no final de abril. Na confusão, o rapaz, que estava em uma lanchonete para uma festa de aniversário, correu e acabou atingido por estilhaços.

Vanessa afirmou, segundo reportagem do jornal Agora, que os policiais se recusaram a atendê-lo e ameaçaram os vizinhos que tentaram fazer isso. Dias depois, quando viu que havia perdido o olho, o adolescente encheu o olho bom de lágrima, mas se fez de forte para a mãe.

Por conta dessas ironias da vida, antes queria ser policial militar. Agora, não mais.

Que uma parcela da polícia militar paulista é incompetente e despreparada para lidar com a população, isso é fato. Que outra parcela tem graves problemas éticos e morais e não deveria nunca ser autorizada a tocar uma arma, quiçá zelar pela segurança das pessoas, também é notório. E não é novidade para ninguém que a política de contenção dos mais pobres pelo governo paulista sempre foi feita na base da bala e da bomba em nome da paz dos "homens e mulheres de bem".

Foto: Rubens Cavallari/Folhapress

Foto: Rubens Cavallari/Folhapress

Isso me lembra outra história triste. Quando o Ministério do Trabalho libertou, há alguns anos, pessoas escravizadas em uma fazenda de cacau, em Placas, no Pará, encontrou uma criança que também havia tido o olho esquerdo roubado pelo poder público.

Crianças eram colocadas para trabalhar desde cedo para ajudar a família a quitar a dívida contraída ilegalmente com o empregador. Ao todo, 150 pessoas foram resgatadas, dentre as quais 30 crianças.

Uma delas carregava cacau quando tropeçou em um tronco. Ao cair, teve o olho esquerdo perfurado por um toco de madeira e perdeu a visão.

Se a culpa direta é dos produtores rurais que impuseram uma condição de servidão por dívida àquelas famílias, a responsabilidade final é do Estado brasileiro, signatário de tratados internacionais e guardião da Constituição Federal – que proíbe a existência de escravos e redução dos mais jovens a instrumentos descartáveis de trabalho. Por mais que exista uma política no combate a esse crime, a falta de competência de garantir que coisas assim aconteçam levou o Brasil ao banco dos réus da Corte Interamericana dos Direitos Humanos.

A maioria da crianças coletoras de cacau estava doente, algumas com leishmaniose e outras com úlcera de Bauru. Sem contar que havia cobras, escorpiões e carrapatos infestando a área. Dormiam em casas cobertas de lona, de palha, muitas sem parede lateral e de chão batido, algumas com teto feito de placas de madeira. Algumas estavam há anos trabalhando no local

Quem reclamava apanhava. Trabalhadores disseram que haviam sido agredidos por policiais chamados pelo patrão para dar um jeito nos lamentos sobre as péssimas condições de trabalho. Novamente, a polícia agindo para reprimir as hordas bárbaras em nome dos "homens e mulheres de bem" deste país.

Você, que tem dois olhos bons, consegue enxergar o que acontece além do seu dia a dia ou da bolha em que sua rede social preferida te coloca?

Pois não deixa de ser simbólico que, incapazes de garantir um futuro decente para os jovens das periferias das grandes cidades ou dos rincões mais pobres do interior do país, também roubemos o seu direito de enxergar o próprio futuro.

Não basta negar-lhes a dignidade, precisamos garantir que não sejam capazes de ver o quão sombrio é o mundo que estamos deixando para eles.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.