Topo

Leonardo Sakamoto

Em cerimônia em Belo Monte, Dilma quer jogar pá de cal no futuro

Leonardo Sakamoto

06/05/2016 15h22

A política de construção de hidrelétricas no Brasil é estruturada na base do medo. Não se investe o que se deveria na troca por geradores mais potentes e em melhores linhas de transmissão para diminuir as perdas e interligar o sistema. Investe-se menos do que o necessário em energias alternativas. Ignora-se em qualquer planejamento que a mudança climática afetou de forma definitiva nosso regime hídrico e, portanto, nossa capacidade de geração. Isso sem falar de uma discussão profunda de nosso modelo de consumo. E, quando a bomba estoura sob risco de apagão ou no aumento do custo da megawatt-hora, impõem-se uma chantagem barata:"Olha, vocês têm que escolher: ou sacrificamos algumas comunidades e ecossistemas ou não vai ter energia para vocês verem o último episódio da novela na TV."

Para defender a usina hidrelétrica de Belo Monte, que é a principal joia do Programa de Aceleração do Crescimento, o governo federal tergiversou, escondeu, mentiu.

E, agora, antes de deixar o cargo, Dilma Rousseff foi até Vitória do Xingu, no Pará. Em uma cerimônia para comemorar o início da operação comercial da usina hidrelétrica de Belo Monte, proferiu um discurso com trechos que são uma ofensa à inteligência de quem acompanhou a obra.

Ele tem 2983 palavras, mas vamos nos ater a apenas 151 porque isso é um post, não uma tese de doutorado. Pincei dois trechos.

O primeiro eu chamo de "Trecho do Óleo de Peroba". Vamos às frases, comentadas:

Nós sabemos que essa usina foi objeto de controvérsias.

Que bom que você sabe disso.

Ela foi objeto de controvérsias muito mais pelo desconhecimento do que pelo fato de ela ser uma usina com problemas.

Para, miga, cê tá lôka? A usina não tem problemas, a usina é, em si, um problema.

As pessoas desconheciam o que era Belo Monte.

Você está desconsiderando os indígenas que seguem reclamando da obra na categoria "pessoas" de propósito ou foi ato falho?

E vejam vocês o que aconteceu: com Belo Monte, nós evitamos de poluir não só aqui a região, não só o Pará, não só a Região Norte. Nós evitamos de poluir todo o Brasil, porque ela é uma das mais importantes hidrelétricas no nosso país.

E as comunidades indígenas e ribeirinhas impactadas ou deslocadas? E os trabalhadores mortos? E o tráfico de pessoas para exploração sexual a fim de servir os canteiros de obra? E a criação de novos vetores de desmatamento, o que acentua as mudanças climáticas e a ocupação desordenada do solo?

A pedido do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana apresentei um relatório com recomendações sobre os impactos de Belo Monte, após visita à região. Entre elas, ouvir os indígenas (que estavam sendo ignorados), cumprir as condicionantes ambientais, investigar as denúncias de intimidação contra quem não queria sair, apurar invasão de propriedade e indução de assinaturas de contratos. O que aconteceu com o relatório? Deve ter embrulhado pão ou peixe, não sei ao certo. Pelo contrário, até trabalho escravo de adolescente em prostíbulo que atendia os empregados de Belo Monte – impacto que é previsto em qualquer obra desse tipo – ocorreu. Para não dizer outros impactos sociais e ambientais que ainda não totalmente mensurados.

Uma investigação da Repórter Brasil, por exemplo, mostrou que a usina poderia ter aproveitando na obra madeira removida com autorização do poder público na área da usina, mas não conseguiu controlar esse processo. Toras foram queimadas, lançando gases de efeito estufa na atmosfera e contribuindo com o aquecimento global. Ao mesmo tempo, o Consórcio Construtor Belo Monte foi multado por comprar madeira irregular. Ou seja, despreza madeira legal e adquire madeira ilegal.

Instalar uma usina termonuclear onde está o Estádio Mané Garrincha ninguém quer. Mas causar impacto no interior da Amazônia, onde vivem os mais pobres, tudo bem.

E o segundo, eu chamo de "Trecho do Sincericídio":

Eu quero e eu falo esses números porque eu acho importante destacar que com o Belo Monte nós não levamos só energia para o resto do Brasil, nós criamos aqui uma riqueza única que é tornar disponível, colocar à disposição das empresas que quiserem vir aqui colocar o seu negócio, participar desse Estado que tem grandes reservas minerais, grande potencial agrícola, podem vir aqui porque não vai faltar energia.

Montes de panelas e outros bens de consumo, que serão produzidos nos Estados Unidos a partir de matéria-prima siderúrgica produzida na região, terão embutidas em seu custo o desaparecimento de aldeias indígenas e o desmatamento ilegal. Celebremos.

Dessa forma, o país continua seguindo sua cruzada em prol do desenvolvimento a todo o custo. Para produzir e, assim, exportar, gerar divisas, pagar juros de empréstimos, e assim poder contrair mais empréstimos e investir na produção. Não sem antes destruir outro lugar e outra comunidade. Que pode ser indígena, mas também ribeirinha, camponesa, quilombola, caiçara ou mesmo moradores da periferia de grandes cidades.

Ao dizer isso, Dilma não trouxe nada de novo sobre a sua visão de mundo. Até porque é sabido que ela defende com unhas e dentes um modelo de desenvolvimento que se assemelha, e muito, àquele que foi levado à cabo durante a ditadura contra a qual ela lutou.

Para ela, esse comentário pode ser útil para conquistar o eleitor da "nova classe média" (a.k.a. classe baixa com poder de consumo) que tem a (justa) preocupação de saber se vai haver energia para os eletrodomésticos que acaba de adquirir.

Mas pergunto-me se, neste momento em que está lutando para construir uma narrativa para o final de seu governo (porque seu mandato é praticamente impossível) e precisa mais do que nunca do trabalho da base de seu partido (o pessoal de esquerda, que faz corpo a corpo junto à massa, ao contrário dos emissários com nojo de gente que ocuparam muitos dos gabinetes em Brasília), esse tipo de comentário em um discurso realmente ajuda.

Ou se ela disse tudo isso para mostrar, de uma forma melancólica, que o discurso de que o "progresso" está acima da dignidade humana é o que, enfim, nos espera. Jogando assim uma pá de cal sobre si e sobre as futuras gerações.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.