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Leonardo Sakamoto

A placa diz que a cidade é de Jesus. Mas ele me disse que isso é intriga

Leonardo Sakamoto

19/06/2016 12h48

Uma mensagem na entrada de Sorocaba, cidade do interior paulista, tem sido alvo de uma polêmica. O Ministério Público solicitou a remoção de uma placa com a frase "Sorocaba é do Senhor Jesus Cristo" por considerar que ela viola a liberdade de crença e o Estado laico. Agora, a 11a Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça determinou que ela deve ser mantida.

O relator do processo, desembargador Oscild de Lima Júnior, afirmou, segundo reportagem do Estado de S.Paulo, que "o Brasil foi colonizado e formado dentro dos parâmetros da civilização cristã". Ou seja, a questão seria cultural, não religiosa.

A seguir essa questionável lógica, outras placas poderiam ser colocadas. Afinal, a bíblia não é feita só do bom homem de Nazaré. Exemplos:

"Em Sorocaba, é proibido comer camarão" (Levítico 11:09 e 10) ou

"Bem-vindo a Sorocaba, terra onde os bancos não podem cobrar juros" (Levítico 25:37) ou ainda

"Em Sorocaba, não use mullets, muito menos megahair" (Levítico 19:27)

Adoro quando alguém se utiliza do discurso de nossas "raízes históricas" para justificar a permanência de algo. Afinal, a escravidão, a sociedade patriarcal, a desigualdade social estrutural, a exploração irracional dos recursos naturais, a submissão da mulher como mera reprodutora e objeto sexual, as decisões de Estado serem tomadas por meia dúzia de iluminados ignorando a participação popular, lavar a honra com sangue, caçar índios no mato, tudo isso está em nossas "raízes históricas". E, vale lembrar, que queimar pessoas por intolerância de pensamento está nas raízes históricas de muita religião.

Quando o ser humano consegue caminhar a ponto de ver no horizonte a possibilidade de se livrar das amarras de suas "raízes históricas", obtendo a liberdade para acreditar ou não, fazer ou não fazer, ser o que quiser ser, instituições não ajudam a catalisar esse processo. Nossa primeira Constituição republicana já contemplava a separação entre Estado e Igreja, mas estamos mais de 120 anos atrasados em cumprir a promessa.

sorocaba

Foto: Pedro Negrão/Jornal Cruzeiro do Sul

Em 2012, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo pediu que a Justiça Federal determinasse que as novas notas de reais a serem impressas viessem sem a expressão "Deus seja louvado". Não foi atendida, infelizmente.

O Banco Central (responsável pelo conteúdo das notas) informou que o fundamento legal para a inserção da expressão "Deus seja louvado" nas cédulas era o preâmbulo da Constituição, que afirma que ela foi promulgada "sob a proteção de Deus". O procurador regional dos Direitos do Cidadão, Jefferson Aparecido Dias, afirmou, na época, que "quando o Estado ostenta um símbolo religioso ou adota uma expressão verbal em sua moeda, declara sua predileção pela religião que o símbolo ou a frase representam, o que resulta na discriminação das demais religiões professadas no Brasil".

Não é porque o país tem uma maioria de cristãos que espíritas, judeus, budistas, muçulmanos, ateus, religiões de matriz africana, enfim, minorias, precisem aceitar um crucifixo em um espaço do Estado. Mas considerando que crucifixos e referências religiosas adornam edifícios públicos como o próprio Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, não se pode dizer que o Poder Judiciário e o Legislativo são isentos na matéria.

E, o mais relevante: as denominações cristãs são parte interessada em polêmicas judiciais, como pesquisas com célula-tronco ao direito ou a extensão do direito ao aborto. Se esses elementos estão presentes nos locais onde são tomadas as decisões, como garantir que elas serão isentas? O Estado deve garantir que todas as religiões tenham liberdade para exercer seus cultos, tenham seus templos, igrejas e terreiros e ostentem seus símbolos. Mas não pode se envolver, positiva ou negativamente, para promover nenhuma delas em espaços públicos.

E não sou eu quem diz isso, mas Mateus: "Dai, pois, a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus" (Mateus 22:21).

"Ah, se é assim, vamos implodir o Cristo Redentor!" Particularmente, mantendo o mirante do Corcovado, façam o que acharem melhor com a estátua. Ou coloquem um Goku gigante. Mas esse argumento é chantagem besta, do mesmo DNA de: "se for para começar a discutir as regras do jogo, levo a minha bola embora".

Se a Justiça não quiser subtrair, que então some. Coloque uma placa com uma Estrela de Davi, uma Crescente com uma Estrela, um OM em sânscrito, uma Roda do Dharma, um Yin-Yang, um Khanda e algumas reflexões ateístas. Mas tendo em vista todas as manifestações religiosas e crenças do brasileiro, vai faltar espaço na entrada de Sorocaba para registrar tudo. Então, se não podemos todos, não coloque ninguém.

E, façamos justiça, Sorocaba não é a única cidade a ter um placa assim, há muitas outras. Aliás, eu e uma amiga já pensamos em colocar uma placa na entrada de Paraty (RJ) com a frase "Paraty pertence a Satanás" para ficar ao lado de outra atribuindo a propriedade ao inspirador do cristianismo. Os leitores não dizem que sou satanista, então vamos colocar isso em prática, porque tenho meus direitos…

Você pode estar pensando que esse debate é inútil frente a tantas necessidades do país. Mas está enganado. Ele é simbólico, portanto estruturante do que entendemos como Brasil.

O respeito aos direitos humanos não deveria partir do medo de ser punido, mas da consciência de que a sociedade deve levar em conta a vontade da maioria desde que respeitada a dignidade das minorias. E isso não é negociável.

Se você acha que isso vale, por exemplo, para questões de cor de pele ou gênero mas não para origens étnicas ou religião, simplesmente não entendeu bem a ideia.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.