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Leonardo Sakamoto

Pokémon Go, Banco Imobiliário e a reforma trabalhista de Temer

Leonardo Sakamoto

18/07/2016 07h20

Quando eu jogava Banco Imobiliário e War, decidíamos mudar as regras do tabuleiro para fazer com o que a disputa andasse mais rápido. Quem já passou horas em intermináveis contendas com dados e pecinhas (sim, havia diversão antes do Pokémon Go), tentando "Conquistar a Totalidade da Ásia e da América do Sul", sabe bem o que estou falando.

Depois, a gente cresce e percebe que o mesmo funciona para a vida real. Por exemplo, defenestrar parte da legislação que garante as condições mínimas para a compra da força de trabalho no meio do jogo é uma opção defendida para acelerar o crescimento econômico.

Como já disse aqui antes, informatizar, desburocratizar, reunir impostos e tornar mais eficiente a relação de compra e venda da força de trabalho é possível e desejável e certamente irá gerar boa economia de recursos para empresários e de tempo para trabalhadores. Desonerar a folha de pagamento em alguns itens, como diminuir a contribuição previdenciária para setores que usam grande quantidade de mão de obra é possível também. Isso sem contar que ninguém é contra sobrepor o que é negociado entre patrões e empregados/sindicatos ao que está legislado – desde que isso signifique ganhos reais para ambos os lados.

poketemer

O problema é que, por trás do discurso do "vamos avançar", está também o desejo de tirar do Estado o papel de juiz nesse processo, deixando os competidores organizarem suas próprias regras. Quando um sindicato é forte e seus diretores não jogam golfe com os diretores das empresas, nem recebem deles mimos, ótimo, a briga é boa e é possível obter mais direitos do que aquele piso da lei. Mas, e quando não, faz-se o quê? Rezamos?

Quando alguém promete uma reforma trabalhista sem tirar direitos dos trabalhadores irá, provavelmente:

a) mudar a CLT e acrescentar direitos aos trabalhadores e tirar dos empresários (posso contar também a do papagaio que passava trote ao telefone);
b) desenvolver um novo conceito do que seja um direito trabalhista (situação em que o pintor surrealista René Magritte diria: "isto não é um cachimbo");
c) diminuir a arrecadação do Estado junto às empresas e manter os direitos dos trabalhadores (com a nossa sanha arrecadadora e os ralos de corrupção?);
d) vai operar um milagre mais espantoso do que andar sobre as águas ou transformar água em vinho.

A sociedade mudou, a estrutura do mercado de trabalho mudou, a expectativa de vida mudou. Portanto, as regras que regem as relações trabalhistas e a Previdência Social podem e devem passar por discussões de tempos em tempos.

Ou seja, caso se encontrem pontos de convergência que não depreciem a vida dos trabalhadores, não mudem as regras do jogo no meio de uma partida sem a concordância de todos e atendam a essas mudanças, elas podem passar também por uma modernização. Tem muita coisa na CLT que passou da hora em ser alterada, mas o seu coração – impedir que o natural desequilíbrio entre trabalhador e capital não seja aprofundado – deve ser preservado.

Essa discussão não pode ser conduzida de forma autoritária ou em um curto espaço de tempo. Pois essas medidas não devem servir para salvar o caixa público, o pescoço de um governo e o rendimento das classes mais abastadas, mas a fim de readequar o país diante das transformações sociais sem tungar ainda mais o andar de baixo.

Por exemplo, falar em imposição de uma idade mínima para aposentadoria sem considerar que os mais pobres começam a trabalhar mais cedo é desconhecer a realidade – para ser polido. Em lugares com expectativa de vida menor, como o Maranhão, pelas propostas que circulam sobre as mudanças na Previdência, os aposentados não terão muito tempo para usufruir as pensões antes de morrer.

Dois projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional, que devem contar com o apoio do governo Michel, são vistos como graves retrocessos para os direitos dos trabalhadores, podendo – sob a justificativa de "destravar" o crescimento econômico – causar impactos na qualidade de vida de milhões de pessoas.

O primeiro legaliza a contratação de prestadoras de serviços para executarem atividades para as quais outras empresas foram constituídas (atividades-fim) e não apenas serviços secundários, como é hoje. É claro que a terceirização precisa de regras melhores no Brasil, porque muita gente fica ao relento. Mas a aprovação da terceirização da atividade-fim do jeito que propõe o projeto, dando a possibilidade de contratar por PJ praticamente qualquer função de uma empresa, pode causar sérios danos à qualidade de vida dos trabalhadores e trabalhadoras do país.

Por exemplo, se os defensores desse novo projeto topassem a terceirização da atividade-fim acrescentando a garantia de contrato coletivo de âmbito nacional para manter a responsabilidade do setor econômico para os subcontratados, a conversa seria outra. Mas daí a ampliação da terceirização não cumpriria seu objetivo que é diminuir os custos empresariais.

O segundo projeto é exatamente o que permite que convenções e acordos coletivos de trabalho negociados entre patrões e empregados prevaleçam sobre a legislação trabalhista, mesmo que isso signifique perdas aos trabalhadores. Como já disse, negociar tendo como base nosso sistema sindical, que em muitos casos serve aos interesses dos próprios sindicalistas e não dos trabalhadores, será entregar o galinheiro à raposa.

E, antes de qualquer reforma, seria importante melhorar a regulação do mercado de trabalho (aliás, regulação é algo péssimo por aqui), desenvolver a qualificação profissional de forma a gerar empregos mais sólidos, melhorar o sistema de ingresso no mercado de trabalho (o que inclui dar efetividade ao serviço nacional de intermediação de mão de obra, pois o que existe em boa parte do país é o bom e velho "gato" intermediando) e, é claro, a redução na jornada – pleiteada pelos trabalhadores e empurrada há anos.

O cidadão deveria ter o direito de escolher um mandatário de acordo com a agenda que ele propõe para os direitos trabalhistas e previdenciários – o que não inclui Michel, cujo programa de governo não foi eleito e não será reeleito.

Infelizmente, candidatos com chance real de vitória sempre vão esconder suas reais intenções quanto a esses direitos sob medo de serem ignorados pelos eleitores. Alguns vão até mentir para chegar lá, como aconteceu. Como já disse aqui, é mais fácil arrancar sinceridades sobre antropofagia da boca de políticos do que sobre CLT e Previdência. Se bem que devorar o trabalhador enquanto ainda respira é antropofagia.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.