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Leonardo Sakamoto

Porque somos pobres. Só porque somos pobres

Leonardo Sakamoto

25/07/2016 19h42

Silvandira Sotera da Cruz completou, nesta segunda (25), 35 anos. Ganhou de presente a comunidade em que morava – a ocupação Carlos Farias, na periferia da capital paulista – transformada em escombros. Cumprindo uma ordem de reintegração de posse solicitada pela Prefeitura de São Paulo, a Polícia Militar utilizou bombas de gás e balas de borracha. A justificativa é de que a área em que 350 famílias estavam era de risco. Os moradores discordam da avaliação e reclamam que não houve diálogo e nem foram garantidas alternativas para as pessoas que, agora, observam toda uma vida amontoada na rua. O ex-senador Eduardo Suplicy foi detido por protestar contra a reintegração de posse e levado para a delegacia.

Nascida em Irará (BA), Silvandira, que é representante da comunidade, trabalha como segurança e seu marido é ajudante de pedreiro.

Chorando muito, conversou comigo.

Segundo ela, foi o aniversário mais triste de sua vida.

educandario

***

O batalhão de choque entrou com as bombas deles, machucaram as nossas pessoas como se a gente fosse bicho.

Tinha bebezinho de colo que quase sufocou com bomba de gás e foi levado pro hospital.

As crianças corriam no meio da rua.

Eles tiraram tudo. Tem gente desmaiada. A comunidade tá no chão.

Foram 350 famílias. Estamos no meio da rua, de frente pra comunidade.

Há pessoas que não tem onde ir.

Ninguém imaginava isso. Foi muito triste.

Suplicy deitou no meio da rua, para as maquinas não passarem. Ele prometeu que estaria com a gente ontem e esteve.

A gente deitou no chão para não deixar as máquinas passarem porque a gente sabia que iam derrubar todas as nossas coisas.

Mas eles arrastaram o Suplicy. Levaram ele preso.

Tem idoso que foi queimado com bomba.

Foi bala de borracha, foi gás.

Parecia que a gente era bicho.

E mataram cachorro a tiro.

Os moradores botaram fogo, fizeram barricada, para impedir a chegada de máquinas.

Quando o batalhão da polícia chegou, tudo foi destruído.

Não deram nem chance da gente falar, chegaram destruindo tudo.

O que conseguiu aproveitar, agora tá aí, no meio da rua.

Trataram gente que nem bicho.

Nossas casas de alvenaria, que levamos anos para fazer.

Eu cavei muito barro, com as minhas mãos, para fazer meus cômodos. E agora não tenho mais nada.

E a gente não é invasor, esse terreno é público, é da prefeitura.

Moradia no Brasil é direito, é direito para todos, é isso que lei diz.

Mas, todo mundo trabalha e muita gente não consegue achar uma casa para alugar com o dinheiro que ganha. Tem família com três, quatro filhos. É mais difícil ainda para eles.

Eu vou morar num quartinho com meu esposo. Mas as famílias que estão no meio da rua, sem ter onde ir. Como é que faz?

O prefeito havia prometido que não haveria reintegração. Por isso, teve gente que havia saído com medo e voltou para a comunidade.

Até agora não recebemos auxílio aluguel. Nada.

A gente soube que o juiz não cedeu de maneira alguma.

Muita gente machucada, passaram por cima das pessoas desmaiadas no chão, meu esposo veio me tirar, estavam sapateando em cima de mim.

A polícia é treinada para proteger a comunidade, eles estudaram para isso, mas eles não fazem isso. Chegaram agredindo famílias de trabalhadores.

Ninguém merece. Nem cachorro. A gente cuida de cachorro, não passa por cima.

Todas as TVs falando mentira, falando que a gente ganhou dinheiro e estava morando lá. A gente falou a verdade nas reportagens, mas até agora não passou na TV o que a gente disse.

Dia 4 de fevereiro de 2014, entramos aqui. Faz dois anos e meio.

A gente não tinha nada. Então, as pessoas foram ficando no terreno. A comunidade foi crescendo.

A gente foi chamado, foi em audiências, contratamos advogado para nos ajudar.

Nos temos uma gravação em que o Haddad prometeu, numa sala cheia, que a comunidade não iria ser despejada, mas que a gente também não ficaria no terreno. A gente seria assistido com auxilio aluguel e depois seria encaminhado para um projeto de moradia.

O laudo da defesa civil que usaram para tirar a gente, dizendo que a área da comunidade é de risco, é muito duvidoso. Tem dois laudos diferentes. Aí entramos na Justiça.

Por isso a comunidade resistiu. Por isso a comunidade não queria sair.

E a prefeitura disse que não tinha dinheiro para o muro de contenção.

Eles ainda estão aqui, os policiais. Estão com escudos fechando a comunidade.

E as pessoas que não tem para onde ir?

Porque somos pobres.

Só porque somos pobres…

Foi o aniversário mais triste da minha vida.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.