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Leonardo Sakamoto

Choques, socos e pauladas: a vida do gado que vira bife

Leonardo Sakamoto

05/09/2016 11h54

Por Piero Locatelli, da Repórter Brasil

Um bezerro é queimado no rosto com um ferro quente em Mato Grosso, bois tomam choques elétricos para entrar em um caminhão em Goiás, um animal recebe pauladas ao atravessar um curral em São Paulo e um filhote recém-nascido é arrastado pelo pescoço no Mato Grosso do Sul.

Cenas como essas foram registradas pela Repórter Brasil em fazendas que fornecem gado à JBS, a maior produtora de proteína animal do mundo e dona de marcas como Friboi e Swift. As práticas dos seus fornecedores violam a política de bem-estar animal estabelecida pela própria empresa. Além disso, o tratamento dado aos bois tampouco segue as recomendações do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) sobre o assunto.

Gado é identificado com ferro quente em seu rosto. Foto: Piero Locatelli/Repórter Brasil

Gado é identificado com ferro quente em seu rosto. Foto: Piero Locatelli/Repórter Brasil

Para averiguar como as fazendas fornecedoras da JBS tratam os animais, a Repórter Brasil percorreu quatro estados diferentes entre dezembro de 2015 e fevereiro de 2016. Os locais visitados constam em um site da empresa, batizado de "Confiança desde a Origem". O site mostra a localização, os nomes e as datas em que as fazendas forneceram bois aos frigoríficos da JBS. A partir dos dados georreferenciados fornecidos pela empresa, a reportagem encontrou os locais com o uso de GPS.

Em sua página oficial na internet, a JBS divulga que sua carne é produzida a partir de animais tratados com "respeito e sem sofrimento" e que os mantém livres de "dor, injúria e doença", uma descrição distante da realidade encontrada nas fazendas. A empresa também afirma que seus fornecedores recebem treinamento constante sobre o assunto, mas fazendeiros e empregados ouvidos pela reportagem alegam nunca ter recebido supervisão da empresa. "Nunca veio ninguém fiscalizando nada. Eu tenho 12 anos morando aqui e ninguém nunca fez isso", disse à reportagem o funcionário de uma propriedade em Mato Grosso do Sul. As imagens flagradas refletem uma prática comum em diversas fazendas no Brasil, e não são restritas somente aos fornecedores da Friboi.

Além das regras da JBS, as fazendas também não atendem às diversas recomendações do Ministério da Agricultura sobre o bem-estar dos animais. Desde 2008, quando estabeleceu uma Comissão Técnica Permanente de Bem-Estar Animal, o órgão federal publica uma série de manuais sobre como os animais devem ser tratados. Os guias servem para orientar os produtores, mas não são de cumprimento obrigatório.

A JBS confirmou a localização dos fornecedores, após ser informada da sua localização, do seu nome e dos problemas encontrados em cada uma delas. Para ler a resposta da JBS, e saber quais foram e onde ficam as propriedades visitadas pela reportagem, clique aqui.

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A JBS alegou que "não é responsável pelo manejo interno das fazendas". A empresa também afirma que "100% dos motoristas da JBS e terceiros são treinados em Bem-Estar Animal, recebem certificados e assinam um termo de responsabilidade sobre essa política da companhia".

Confira os problemas encontrados pela reportagem e as alternativas propostas pelo Ministério da Agricultura em cada caso:

Choque elétricos e pauladas – Choques elétricos são usados para que animais entrem mais rápido em caminhões ou para que eles fiquem de pé dentro das carrocerias. Para acelerar o embarque dos bois, pauladas também são desferidas. Os golpes deixam os animais agitados e fazem até com que eles se pisoteiem.

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O uso do bastão de choques elétricos é desencorajada pelo Ministério da Agricultura. Segundo as recomendações do órgão federal, o instrumento deve ser "usado apenas em situações de emergência, não sendo indicado como prática de manejo devido ao alto risco de acidentes em função das reações dos animais".

A reportagem presenciou animais recebendo choques em dois caminhões. Um deles, da própria JBS, levava gado de uma fazenda ao frigorífico de Barra do Garças, em Mato Grosso. Em outro caso, uma fazenda fornecedora da unidade de abate de Goiânia transportava o gado entre duas propriedades do mesmo dono.

Ferro no rosto e imobilização – Imobilizados de forma violenta, bezerros recebem marcas em seu rosto com ferro quente em uma fazenda no interior do Mato Grosso. O processo, que visa a identificar os filhotes, é feito sem qualquer tipo de cuidado com o animal.

Bezerro-sendo-marcado

O Ministério da Agricultura recomenda que se evite a marcação com ferro quente no rosto do gado sempre que possível. E, caso o procedimento seja necessário, "que se proteja o olho do animal no momento de marcar", o que não ocorreu nas fazendas visitadas pela reportagem. O manual também aconselha que a parte do corpo do boi a ser marcada passe anteriormente por um procedimento de higienização, o que também não aconteceu nos casos presenciados pela reportagem.

As marcações também aconteciam com os animais agitados, contrariando as recomendações do Ministério. Em outra fazenda no Mato Grosso, vacas eram marcadas a ferro em suas pernas ao mesmo tempo em que um funcionário da fazenda realizava um exame de ultrassom – o que deixava os animais extremamente agitados.

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Violência contra bezerros – Antes ainda de serem marcados no rosto, os bezerros já sofrem com violência na chamada "maternidade" – onde ficam as vacas que pariram recentemente, separadas do restante do rebanho. Bezerros nascidos no dia anterior à visita da reportagem eram amarrados pelas pernas ou pelo pescoço e, posteriormente, arrastados por cavalos.

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O Ministério da Agricultura recomenda que o bezerro não seja jogado no chão, prática também vista pela reportagem durante a identificação dos animais. Segundo o manual, o vaqueiro deve erguer o bezerro do solo e utilizar sua perna como apoio para colocá-lo no chão.

Pauladas e pontapés – A agressão a bezerros e bois dentro de currais foi presenciada pela reportagem diversas vezes. Em um confinamento na cidade de Guarantã, interior de São Paulo, e em uma fazenda em Damolândia, interior de Goiás, bandeiras brancas eram usadas para agredir o gado. As flâmulas deveriam servir apenas para indicar o caminho ao gado. Segundo as recomendações do Ministério, elas devem ser usadas como "extensão do braço e não como instrumento de agressão para bater ou cutucar os animais".

Gado com a cabeça presa dentro de curral no interior do Mato Grosso. Foto: Marcio Isensee e Sá/Repórter Brasil

Gado com a cabeça presa dentro de curral no interior do Mato Grosso. Foto: Marcio Isensee e Sá/Repórter Brasil

A lotação dos currais de diferentes fazendas também estava acima da capacidade máxima sugerida pelo Ministério da Agricultura. A recomendação é de que os animais ocupem no máximo "metade do espaço disponível", mas fazendeiros trabalhavam com os currais abarrotados e os animais agitados, muitas vezes machucando uns aos outros.

As vacinações também aconteciam com os animais em movimento, o que pode causar lesões. A recomendação do Ministério da Agricultura é de que os bois sejam imobilizados antes da aplicação –o que não acontecia em fazendas visitadas pela reportagem.

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Sistema da JBS é falho – A reportagem visitou ao menos quarenta e oito locais apontados pelo sistema do site "Confiança desde a origem" da JBS. Ao procurar os locais apontados pelo banco de dados (acesse aqui), a reportagem se deparou com um sistema impreciso e, muitas vezes, falho.

A reportagem usou como base fazendas que tiveram sua localização confirmada pela JBS. Foto: Marcio Isensee e Sá/Repórter Brasil

A reportagem usou como base fazendas que tiveram sua localização confirmada pela JBS. Foto: Marcio Isensee e Sá/Repórter Brasil

Em alguns casos, o banco de dados apontava para fazendas com nomes diferentes daqueles que eram encontrados no local. Em outros, fazendeiros negavam vender gado à empresa. O site também mostrava fazendas localizadas dentro de cidades, lagos de barragens e até de Terras Indígenas. A JBS alega que "os dados geográficos das fazendas fornecedoras de gado são checados periodicamente por uma empresa terceira para evitar possíveis erros de localização". (Leia a íntegra da resposta).

Os problemas referentes à promoção do bem-estar animal mencionados nessa reportagem se referem somente a fazendas com localização precisa e que tiveram relação comercial com a JBS confirmada pela própria companhia.

Brasil não tem lei sobre bem-estar em fazendas – A Constituição de 1988 estabelece que compete ao poder público vedar "práticas que submetam os animais a crueldade", mas não há legislação específica sobre o bem-estar no manejo de animais no país.

Para tentar se adequar a padrões mundiais, o governo criou em 2008 uma "Comissão Técnica Permanente de Bem-Estar Animal". Nos anos seguintes, foram publicadas as recomendações utilizadas nessa reportagem, elaboradas por universidades que pesquisam o tema no Brasil. (Acesse os manuais publicados pelo Mapa).

Fazendeiro imobiliza bezerro no interior do Mato Grosso do Sul. Foto: Marcio Isensee e Sá/Repórter Brasil

Fazendeiro imobiliza bezerro no interior do Mato Grosso do Sul. Foto: Marcio Isensee e Sá/Repórter Brasil

Já a JBS publica em seu site a sua política de bem-estar animal, baseada no princípio das "cinco liberdades". Segundo essas regras, os animais da sua cadeia produtiva devem ser livres de "fome e sede; desconforto; dor, injúria e doença; medo e estresse; e serem aptos a expressar seu comportamento natural" (Acesse o site de bem-estar animal da empresa). A JBS também afirma estar entre "as melhores empresas do mundo no que se refere às práticas de bem-estar animal".

Essa reportagem faz parte de um especial sobre a indústria da carne. Leia mais, clicando aqui

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.