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Leonardo Sakamoto

Eleições 2016: A esquerda não está morta. Mas não será mais a mesma

Leonardo Sakamoto

03/10/2016 00h04

Algumas reflexões preliminares sobre os resultados eleitorais deste domingo (2):

1) Antipetismo: Como era de se esperar, o processo de impeachment e o bombardeio de denúncias de corrupção relacionadas à operação Lava Jato fizeram com que o Partido dos Trabalhadores fosse o maior derrotado desta eleição. Apesar de vitórias pontuais e da presença em algumas disputas de segundo turno, o PT será apenas uma sombra do que já foi considerando as administrações municipais. A menos que um fato novo ocorra, essa condição provavelmente se repetirá nas eleições de 2018, fazendo com que o partido perca a hegemonia na esquerda.

O PSOL está no segundo turno em duas cidades politicamente relevantes, Rio de Janeiro (em que Marcelo Freixo, sem tempo de TV e recursos financeiros escassos, venceu a máquina peemedebista de Pedro Paulo/Eduardo Paes) e Belém (com Edmílson passando em segundo, sendo ultrapassado, na última hora, por Zenaldo Coutinho, do PSDB). Vitórias nesses grandes centros serão importantes para que o PSOL cogite em disputar essa hegemonia partidária da esquerda.

Mas, tão ou mais importante que isso, será saber como os movimentos sociais e sindicatos historicamente ligados ao PT e que formaram sua base social irão se comportar de agora em diante. E se o partido será capaz de se voltar a essa base e às suas demandas.

Vale lembrar, contudo, que a esquerda e seus ideais são maiores que partidos que dizem falar em seu nome e decepcionam o povo ao se tornar aquilo que mais criticavam no intuito de se manter no poder em âmbito federal. Esse erros fazem com que décadas se percam, passos sejam dados para trás, conquistas acabem lançadas no lixo. Mas a esquerda também é maior que pessoas que não gostam de ler livros de história e acham que política pode ser feita sem reflexão sobre ela mesma. Porque a história de movimentos contra-hegemônicos é uma história de reconstrução.

Um partido pode se esfacelar diante de seus erros e dos crimes de seus membros. Mas uma ideia, não. Líderes, falsos ou verdadeiros, caem a toda a hora. Mas uma ideia, não. E a ideia da luta por justiça social e dignidade e pelo direito à identidade e o combate à desigualdade nas grandes cidades e no campo – que norteia historicamente a esquerda – segue viva com movimentos, coletivos e organizações. Bem como a defesa de uma democracia popular e participativa, que continua existindo longe dos palácios e mais perto do povo.

2) Dos gabinetes para as ruas: Os eleitores mandaram um recado através do voto. Parte da esquerda foi desalojada das Prefeituras e realocada nos parlamentos municipais para cumprir o papel de oposição. Parte, desalojada também das Câmaras de Vereadores, deverá ir para as ruas, de onde saiu na década de 80. Se isso se confirmar, poderá significar uma perda para a política como um todo pois a arena institucional é o local por excelência para a resolução de conflitos na sociedade.

De um ponto de vista muito otimista, o retorno às ruas pode levar, finalmente, o PT e os movimentos a ele relacionados fazerem sua autocrítica. Isso será um processo bem doloroso e longo, em que os diferentes grupos e movimentos da esquerda irão bater bastante cabeça entre si, como foi na década de 70 durante a ditadura, cada um lutando pela sobrevivência de seu discurso. Mas, particularmente, não acredito que o partido e alguns movimentos serão capazes de fazer essa autocrítica.

E como isso se resolve então? Na minha opinião, não se resolve. O problema entre uma velha e uma nova esquerda está no contexto histórico em que seus atores foram formados. A meu ver a solução se dará através de renovação geracional, ou seja, os mais antigos se retirando com a idade para dar lugar aos mais novos – e, aqui, não falo de idade, mas da forma como se vê e se pratica a política. É triste que seja assim, mas tendo em vista os embates dentro da própria esquerda, não acredito em conciliação possível. E partidos políticos, novos ou antigos, não serão a única estrutura adotada por aqueles que construirão esse novo ciclo da esquerda. Os movimentos que envolvem os mais jovens, mais horizontais e que trazem pautas relacionadas à qualidade de vida nas grandes cidades, vão dar menos importância à democracia representativa tradicional.

Há duas grandes frentes de esquerda ocupando o cenário público hoje: a Frente Brasil Popular (mais ligada ao PT, MST, entre outros) e a Frente Povo Sem Medo (que conta com a presença do MTST, correntes do PSOL, entre outros). De certa forma, apesar de haver uma relação cordial entre elas, os movimentos de seus protagonistas representa, metonimicamente, o embate em curso, hoje, dentro da própria esquerda.

3) Internet sim, mas não subestime a TV: Durante um bom tempo, a TV ainda terá papel significativo nas eleições, ao contrário do que muitos pensavam diante do avanço da internet. Seja através da exposição de candidaturas via propaganda eleitoral obrigatória (e todo o inferno relacionado à montagem de coligações bisonhas que isso significa), seja pela eleição de figuras que se tornaram famosas com a ajuda da televisão, como o prefeito eleito de São Paulo, João Doria Jr. Ele venceu o último debate, realizado pela TV Globo, por sua capacidade de se comunicar estar bem acima da de seus adversários – mesmo que muitas de suas respostas tenham sido vazias de conteúdo. Na TV, não raro, não é necessário ser sábio e sim parecer sábio. Quem tem competência midiática vai mais longe, sendo o oposto também verdadeiro. Vide o quanto isso atrapalhou Dilma Rousseff.

4) O engodo da antipolítica: A classe política é responsável pela situação a que chegamos, com toda a corrupção, incompetência e ignorância que minou a credibilidade de instituições. Compra da Reeleição, Mensalões, Trensalões, Lavas-Jato e a maioria dos escândalos, que permanece longe dos olhos do grande público. Ao mesmo tempo, a democracia representativa tradicional e seus vícios se mostraram insuficientes para as demandas da população.

Políticos, mídia, empresários e parte da sociedade conseguiram a proeza de dar espaço aos que defendem que "fazer política é escroto". Ou seja, ao invés de tentarmos melhorar a política, reinventar a democracia, a saída é negar tudo o que ela representa e buscar saídas rápidas, vazias e, não raro, autoritárias. Daí, surgiram candidatos que estufaram o peito e mentiram, com orgulho, que não são políticos e não fazem política. Espalhou-se a percepção de que quem se engaja historicamente na política, partidária ou não (porque muitos fazem questão de resumir toda política à partidária), tem sempre interesses financeiros.

São Paulo elegeu o discurso de negação da política, apesar de Doria ser um político desde sempre. O primeiro colocado no primeiro turno do Rio é um religioso que também nega a política. E, em Belo Horizonte, passam para o segundo turno um ex-goleiro e um dirigente de futebol. Isso abre portas para que pessoas que se colocam como "salvadores da pátria" ganhem espaço a fim de nos "tirar das trevas" sem o empecilho da "política".

5) Onda conservadora: No mesmo dia em que eleições municipais eram realizadas no Brasil, a Colômbia, através de um plebiscito, disse "não" ao acordo de paz assinado entre o governo daquele país e as Farc. Neste ano, o Reino Unido também votou pela saída da União Europeia. E isso não foi causado apenas pelos discursos xenófobos contra imigrantes, mas também pela situação econômica de muitos trabalhadores britânicos que culpam o bloco pela deterioração de sua qualidade de vida. Some-se a isso o aumento da influência dos partidos de extrema direita na Europa e a possibilidade de Donald Trump sentar-se no Salão Oval da Casa Branca. Ao final, podemos estar vivendo uma tendência global conservadora.

O tempo chama a esquerda a refletir sobre seus erros, não só no Brasil, em todo o mundo. E a encontrar novos caminhos e construir resistência – que não significa apenas lutar contra retrocessos, mas apontar saídas – saídas que não podem excluir pobres, trabalhadores e minorias do mundo, pois o mundo só fará sentido se for construído com eles, por eles e para eles. Muitos direitos foram efetivados desde a Constituição Federal de 1988 – direitos que não serão retirados sem muita reclamação ou luta por aqueles que viram um quinhão mínimo de dignidade ser construído entre os governos do PSDB e do PT.

Como mostram os instituto de pesquisa, como o Datafolha, a população mais pobre não foi às ruas nem a favor, nem contra o impeachment. Muito menos a maioria dos jovens que coalharam as ruas em junho de 2013. Estão em compasso de espera por não se verem representados pelo que esta aí. Ninguém tem o direito de questionar o seu voto, afinal estamos em uma democracia. A dúvida é se, a depender de como soprar o vento agora, eles explodirão a fim de dizer "não" para quem tentar suprimir os poucos direitos que têm.

Não raro esquecemos que a história não caminha em linha reta e é a resultante de forças que variam em tamanho e intensidade de acordo com cada época. A democracia pressupõe alternância de poder. E, sim, os direitos que foram garantidos podem ser perdidos, incluindo a definição conceitual de coisas caras à nossa civilização, como dignidade e liberdade. Por isso mesmo que a ideia de diálogo é tão importante. É uma ideia paciente, da qual não podemos nos dar ao luxo de abrir mão. Precisa estar viva, nas ruas, nas conversas de bar, na grande política do nosso cotidiano e na pequena política dos parlamentos, gabinetes e tribunais. Ela que fará com que os diferentes não se odeiem e com que, ao final de contas, a barbárie da intolerância não triunfe.

Por fim, o interessante é que a mesma insatisfação com a política tradicional e a mesma crise das narrativas que elevam candidaturas conservadoras no Brasil e no mundo também geram alternativas viáveis à esquerda. Bernie Sanders deu uma bela dor de cabeça a Hillary Clinton, por exemplo. Trump e Sanders são dois lados da mesma moeda. A esquerda no Brasil conseguirá se organizar e será capaz de fazer frente ao desafio de atuar na sociedade civil e, ao mesmo tempo, disputar o significado e as prioridades do Estado de forma partidária? Poderá construir uma nova narrativa que desperte o sonho e o engajamento novamente? Ou estaremos mesmo fadados a mais de uma década de um sombrio macarthismo, repaginado e adaptado, que se desenha adiante?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.