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Leonardo Sakamoto

No Brasil, é mais fácil eleger um fundamentalista religioso do que um ateu

Leonardo Sakamoto

17/10/2016 17h19

O Brasil teve um presidente protestante na figura do presbiteriano Café Filho, que assumiu o país por pouco mais de um ano após o suicídio de Getúlio Vargas, não tendo sido eleito para a função. Mas como o país adora um presidente que governa sem ter sido eleito para isso, tá valendo. O ditador militar Ernesto Geisel era luterano, mas também não foi eleito pelo voto popular. E até agora, o Brasil não teve alguém na Presidência que se afirmasse como evangélico neopentecostal, com suas liturgias da prosperidade e da cura.

Na minha opinião, isso é questão de tempo, haja vista o crescimento de denominações como a Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Mundial do Poder de Deus, Renascer em Cristo, Igreja Apostólica Fonte da Vida, Ministério Internacional da Restauração, Sara Nossa Terra, entre outras. E é natural que seja assim. O que não é natural é que isso venha junto com perdas para a dignidade de outros grupos sociais.

O discurso violento de uma parte dos membros de algumas denominações, principalmente contra outras religiões e a população LGBT é incompatível, contudo, com as atribuições constitucionais de um administrador público. Em tese, a tendência é de que, para se tornarem viáveis eleitoralmente para cargos executivos, pessoas que ostentam esse discurso violento abandonem posições mais radicais em busca do voto.

Ou peçam perdão por terem escrito e defendido algo em um passado muito recente.

No Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, bispo licenciado da Universal e sobrinho de Edir Macedo, segue à frente nas pesquisas eleitorais para prefeito do Rio de Janeiro, em disputa com Marcelo Freixo. Reportagem de Fernando Molica, no jornal O Globo, mostrou trechos de um livro escrito por ele – e publicado em 2002 no Brasil, quando foi eleito senador – no qual desfere uma série de preconceitos contra outras religiões e contra minorias, tendo como referência o período em que viveu na África para ajudar a implantar a igreja de seu tio.

Ele escreveu que a Igreja Católica e outras religiões cristãs "pregam doutrinas demoníacas" e "tem pregado para seus inocentes seguidores a adoração aos ídolos e a veneração a Maria como sendo uma deusa protetora". E que igrejas de matrizes africanas, abrigam "espíritos imundos" e que praticam o sacrifício de crianças. Disse também que o trabalho de sacerdotes de religiões africanas "é motivado pelo maldito amor ao dinheiro".

Segundo a reportagem, no livro, Crivella diz que demônios são responsáveis por vícios e pela homossexualidade. O senador diz que gays não devem ser tratados com menosprezo ou discriminação, mas ressalva que "milhões são vítimas desse terrível mal, vivendo sem paz e numa condição lamentável para o ser humano." E traz alertas: "O pai viciado e adúltero provavelmente passará o mesmo espírito para o seu filho". Para ele, isso explica o fato de "um pai de respeito" passar, de repente, a ser homossexual. "E quando ele morre, o espírito se manifesta no seu filho que prontamente negligencia sua esposa e seus filhos para prosseguir nessa conduta maligna." Entre outras muitas coisas.

Ele pediu perdão após a publicação da reportagem, dizendo que vivia na "imaturidade da fé". O que mostra que a chance de uma eleição pode converter alguém.

O número de católicos tem caído (de 63%, em 2010, para 57%, em 2014, segundo o Datafolha) e o de evangélicos não apenas cresce em número (de 24% para 28%), mas também em presença na política partidária. Durante os últimos anos, um naco conservador dos congressistas religiosos formou uma espécie de bancada fundamentalista, bloqueando projetos de leis que efetivam direitos relacionados à saúde da mulher, educação e questões de gênero – sem contar as tentativa de retrocesso nos direitos já vigentes.

Vale lembrar, porém, que, se por um lado, há parlamentares evangélicos que vociferam contra a dignidade humana, há outros que atuam na defesa dos direitos das minorias, mesmo nos casos em que há conflito com interpretações hegemônicas de sua própria religião, da mesma forma que ocorre com muitos católicos. Um pessoal cujas bases teológicas estão muito mais próximas ideologicamente de mim – que creio no Palmeiras e no combate à justiça social – do que das bases de muita gente de sua própria igreja.

É importante fazer essa ressalva neste momento de polarização extrema e débil, em que pessoas são julgadas politicamente por sua fé. Até porque, no fundo, mesmo aqueles que não se dizem religiosos, uma vez chegando ao poder, atendem às demandas de grupos religiosos ultraconservadores com vistas à chamada governabilidade.

Por exemplo, o combate à homofobia através da educação não avançou quase nada nos últimos anos – por conta da pressão de deputados da bancada fundamentalista e por esse cálculo político. Publicamente, FHC e Dilma foram, no máximo, agnósticos não-praticantes. Mas ajoelharam e disseram amém. E o agnóstico Getúlio Vargas, que tomou o poder através de um golpe, instituiu ensino religioso nas escolas públicas, em 1931, em nome da governabilidade.

Particularmente, ficarei chocado no momento em que o Brasil eleger um presidente declaradamente ateu que não precise esconder isso de seu eleitor com medo que o seu caráter seja, estupidamente, julgado por conta disso. O fato é que o brasileiro aceita mais facilmente alguém que acredita em Deus – mesmo com uma fé diferente da sua – do que alguém que não acredita ou não tem certeza disso. E mesmo que, em nome dessa fé, cometa grandes atrocidades.

No dia em que isso ocorrer, creio que atingiremos a maturidade como democracia. Não porque ateus são melhores, longe disso. Mas porque teremos compreendido que, se o governante zelar pela dignidade e igualdade de direitos de todas as crenças, sua fé pessoal é tão importante quanto o time de futebol pelo qual torce. A não ser pelo Palmeiras, claro, pois isso é evidência de caráter.

O problema nunca é a fé de alguém. Pode-se acreditar na onipotência de Homer Simpson, na onipresença de Goku ou na onisciência de Pikachu e ser um governante bom e justo.

Mas se essa fé é usada como instrumento para causar dor e sofrimento, como caminho para reduzir a dignidade de outra pessoa ou para limitar os direitos fundamentais de outro grupo social, então essa fé é contrária aos princípios constitucionais que um eleito para o cargo de prefeito, governador ou presidente deve assumir. Pois ele não é um parlamentar que representa um grupo, mas alguém que deve governar para todos e todas.

Se houvesse um Deus ou Deusa, esse ser supremo sentiria uma vergonha profunda da suruba entre política e religião que se vê por aqui e uma tristeza de que isso não seja levado em conta na hora do voto. E guardaria tudo para o Dia do Juízo Final.

Mas como não existe nada lá em cima, além da nossa criatividade, passou da hora de tomarmos as rédeas da nossa própria vida.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.