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Leonardo Sakamoto

Tenho pena de quem vota em alguém que diz defender a "família brasileira"

Leonardo Sakamoto

28/10/2016 20h33

Tenho um pouco de pena daquelas pessoas que dizem votar em um candidato porque ele afirma defender a "família brasileira".

De qual família você acha que está falando? Da negra, cuja grande maioria é superexplorada no trabalho, sofre racismo e morre de bala perdida na periferia? Da indígena, que segue sendo dizimada em um genocídio a conta-gotas? Da baseada em uma união homoafetiva, que é amaldiçoada por lunáticos, apanha na rua e sofre na fila de adoção? Das sem-terra e sem-teto, que são tratadas como animais, ladras e sanguessugas simplesmente porque lutam por uma vida melhor? Ou daquela branca, cristã, rica e feliz, que aparece em comerciais de margarina?

Na verdade, há candidatos que idolatram o espelho, defendendo a dignidade daqueles que foram "agraciados" com sua imagem e semelhança.

E, para tanto, vendem a ideia de que os carrascos são vítimas e as vítimas são carrascos. E, pior, convencem os oprimidos a serem cães de guarda de seus opressores. Tudo isso normatizado por campanhas eleitorais, memes nas redes sociais, piadas de certos humoristas (sic), algumas novelas da TV ou best-sellers.

Se certas figuras pitorescas que se dizem guiadas pelo amor, mas atacam o amor dos outros pelo menos condenassem os banqueiros  (Levítico 25:37) e quem come camarão (Levítico 11:09 e 10) ao inferno, pelo menos seriam coerentes.

E onde está Deus que não vê tudo isso? Depois de ver, com os próprios olhos, dezenas de votos serem pronunciados em seu nome por pessoas de reputação tão ilibada na votação do impeachment, tomou uma caixa de Frontal e apagou até agora. Dizem os querubins que ele pediu para ser acordado apenas quando o governo Temer acabar – se é que vai acabar. Ou seja, estamos por nossa conta – e depois me perguntam porque sou ateu. Nem o capeta dá para acionar neste momento porque ele já disse que não se mete com o Brasil.  Tem medo.

No começo era uma cara de nojinho aqui, um balançar negativo de cabeça ali, um tremelique seguido de um sinal da cruz e um deus-que-me-livre-e-guarde. Tudo muito discreto como recomenda a hipocrisia tuipiniquim. Mas como determinados grupos cismavam em achar que podiam ter os mesmos direitos dos "homens e mulheres de bem" desta gloriosa nação, os preconceitos – que sempre existiram – escancararam-se para fora do armário.

Quando eu olhava para algumas regiões governadas por lideranças vinculadas ao fundamentalismo religioso, islâmico, judeu ou cristão, sentia uma certa angústia por essas pessoas. Mal sabia que o sentimento, na verdade, era um ensaio do que vamos viver por aqui.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.