O que é maior: O amor do paulistano pelo carro ou sua empatia com a vida?
Um carro grande e frondoso passou rente a uma ciclovia e eu, pedestre ao lado, antes que tivesse tempo de pensar algo categórico como "que deselegante", percebi que o vidro traseiro do possante estava pintado (isso mesmo, tinta) com uma sugestão para que Fernando Haddad fosse embora da política usando bicicleta.
Achei graça por perceber que o tamanho do ódio era tão grande que ele gastou tempo e dinheiro a fim de demonstrá-lo publicamente. Uma vida triste, na qual o ódio encarcera a algo ou alguém que se detesta.
Vitórias e derrotas fazem parte da democracia, então não entro nesse mérito. Mas mesmo seus opositores reconhecem que a gestão que termina foi uma tentativa de choque civilizacional no que diz respeito à mobilidade urbana, com ciclovias, corredores de ônibus, redução de velocidades, enfim, tirar um pouco o foco central dos carros e olhar para os pedestres e os ciclistas.
Não deixa, então, de ser paradigmático do que é São Paulo e seus moradores o fato do prefeito ser odiado por um de seus acertos e não pelos seus vários erros. Escrevo isso com bastante tranquilidade porque, se forem pesquisar nos arquivos deste blog, verão que a quantidade de críticas a ele foi muito grande.
É claro que eu não esperava do proprietário do carro alegórico em questão uma mensagem como "Haddad, faltou creche, viu?"
Até porque a empatia interclasse social por aqui é mais aceita quando vem de baixo para cima, com os mais pobres defendendo os mais ricos – mesmo quando estes pressionam pela implantação de políticas que afetam, negativamente, os mais pobres. Aliás, se acontece o contrário e alguém da classe média alta ou classe alta defender genuinamente interesses dos mais pobres, não raro, é acusado de demagogo pelos mais ricos e de oportunista pela parte dos mais pobres que é fã dos mais ricos.
Mas é desolador que ainda há quem acredite em um escalonamento de direitos sobre o espaço público. E que administradores da cidade tenham que seguir a cartilha com a qual as desigualdades de São Paulo foram estruturadas ao longo do tempo. Mudanças para algo mais lógico, em consonância com o que acontece no restante do mundo, são vistas como coisa de comunista. Aliás, vocês ficariam surpresos com a quantidade de "leitores" que afirmam que a ONU e suas agências são comunistas, mostrando – mais uma vez – que falta amor no mundo, mas falta interpretação de texto.
Se o prefeito eleito João Doria cumprir suas promessas de campanha, teremos um retrocesso na questão da mobilidade urbana e um retrocesso sobre a democratização do espaço público, como já disse aqui mais de uma vez. O caso mais preocupante é o aumento na velocidade das vias marginais. A pista expressa passará de 70km/h para 90km/h, a central de 60 km/h para 70 km/h e a local de 50km/h para 60 km/h – com exceção da faixa da direita, que não sofrerá mudança.
O número de atropelamentos e acidentes fatais caiu consideravelmente com a redução da velocidade na gestão Haddad. E não são poucos os especialistas em trânsito que afirmam que o número e a gravidade dos acidentes poderá aumentar. E, da mesma forma que aconteceu com a bicicleta, creio que o período com menor velocidade e menos mortes nas marginais não foi longo o suficiente para gerar uma mudança no comportamento de muitas pessoas.
Um dia, quando arqueólogos ETs forem estudar nossa civilização milhares de anos depois de termos sido extintos por conta de alguma burrada que certamente cometeremos, eles vão ter uma dificuldade gigantesca de entender como uma parcela considerável dos habitantes deste planeta considerava máquinas desenhadas para transportar como parte integrante de seus próprios corpos.
Perguntarão como muitos membros dessa estranha civilização dedicavam mais tempo à manutenção desses equipamentos do que à sua própria prole. Ficarão de queixo caído ao entenderem que, quanto mais aceleravam em velocidade, esses seres esqueciam a tristeza de empregos ruins, de casamentos que deram errado e da falta de perspectivas para a vida.
Ficarão intrigados, especialmente, ao perceberem que muitos homens não usavam carros como meios de locomoção mas, sim, como projeções de seus membros sexuais. Por compensação. Por frustração. Obedecendo à programação passada a eles por outra maquininha, a TV, não importa.
Os ETs ficarão decepcionados quando entenderem que havia um sentimento coletivo de que a dignidade das pessoas era menos importante do que a liberdade dessas máquinas.
Daí, os ETs cancelarão imediatamente a pesquisa sobre as ruínas de nossa civilização, ordenando a destruição completa do que restou do planeta. E seguirão para Marte, porque a areia amarela, as rochas e a plantação de batatas de Matt Damon fazem mais sentido.
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