Topo

Leonardo Sakamoto

Haddad sanciona lei que cassa licença de flagrados por trabalho escravo

Leonardo Sakamoto

30/12/2016 11h22

O prefeito Fernando Haddad sancionou, nesta quinta (29), a lei 16.606/2016 que prevê multa de R$ 100 mil a R$ 100 milhões a estabelecimentos que forem responsabilizados por trabalho escravo no município de São Paulo. Caso a situação encontrada seja comprovada como de extrema gravidade, o valor não seja pago ou o caso seja de reincidência, a lei prevê a cassação da licença de funcionamento do estabelecimento e vedada nova concessão por um prazo de cinco a dez anos.

De autoria da vereadora Patrícia Bezerra (PSDB), indicada para assumir a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania na gestão João Dória, a legislação aprovada altera a lei 10.205/1986, que disciplina a expedição de licença de funcionamento para estabelecimentos em São Paulo.

"A lei de combate ao trabalho escravo no município de São Paulo age no ponto chave das cadeias produtivas que praticam esse crime: o lucro. Ao fechar a empresa condenada por essa prática e aplicar-lhe uma multa, mostra-se que esse tipo de produção não pode ser algo vantajoso", afirma Patrícia Bezerra. "É uma maneira de provar que a vida humana e sua liberdade não têm preço e por isso não podem ser comercializadas."

De acordo com Felipe de Paula, secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania, "a nova lei, de iniciativa parlamentar, soma-se ao trabalho feito ao longo dos últimos quatro anos pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania e pela prefeitura. Dá ainda mais peso ao Plano Municipal para a Erradicação do Trabalho Escravo, cujas ações já foram tomadas ou estão em andamento, bem como a uma série de outras atividades de defesa de direitos". Para o secretário, "São Paulo deu passos largos na promoção e na defesa dos direitos humanos, deixando claro que não aceita violações de nenhuma ordem".

Vestuário e construção civil têm sido os principais setores envolvidos em flagrantes de trabalho escravo pelas equipes conjuntas de fiscalização do Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal, Civil ou Militar em São Paulo – muitas vezes encontrando oficinas e confecções que produzem para marcas conhecidas de roupas ou grupos de operários que atuam para obras de grande construtoras. Considerando o Brasil como um todo, o setor que causou o maior número de vítimas desde que o país criou seu sistema público de combate à escravidão, em 1995, é o da pecuária bovina.

A nova lei prevê que a aplicação da multa e o início do processo de cassação ocorrerá após decisões judiciais proferidas por órgão colegiado (a partir da segunda instância). Ou decisões administrativas para as quais não caibam recursos, desde que acompanhadas de parecer favorável da Comissão Municipal de Erradicação do Trabalho Escravo (Comtrae).

O procedimento de cassação de licença também poderá ser aberto no caso de decisão judicial condenatória de sócio administrador, sócio majoritário ou de responsável legal pelo estabelecimento transitada em julgada ou proferida por órgão colegiado por conta do artigo 149 do Código Penal (que trata do crime de trabalho escravo contemporâneo).

A lei 16.606/2016 prevê direito de defesa dos empregadores durante o processo que pode levar à multa e/ou à cassação da licença. Ela foi publicada no Diário Oficial da Cidade de São Paulo, nesta sexta. Entra em vigor imediatamente, mas precisará de regulamentação sobre os procedimentos administrativos que adotará.

Durante sua gestão, Fernando Haddad criou a Comissão Municipal para Erradicação do Trabalho Escravo (Comtrae), reunindo entidades do poder público, de empresas e da sociedade civil para elaborar e monitorar políticas de combate a esse crime. Também foi lançado o Plano Municipal para Erradicação do Trabalho Escravo, que estabelece um cronograma de ações na esfera do município para a erradicação da escravidão contemporânea.

 Trabalhadores produzindo peças para oficina responsabilizada por trabalho escravo (Foto: MPT/Divulgação)

Trabalhadores produzindo peças para oficina de costura responsabilizada por trabalho escravo (Foto: MPT/Divulgação)

Lei Estadual – Desde 2013, o Estado de São Paulo possui uma lei (14.946/2013) que prevê o banimento de empresas que se beneficiem de trabalho escravo contemporâneo. Enquanto a lei municipal age junto à licença de funcionamento, a estadual prevê que as empresas condenadas por trabalho escravo em segunda instância tenham o registro estadual suspenso por dez anos. E, sem isso, é impossível vender no Estado.

O Ministério Público do Trabalho solicitou em uma ação movida contra a M. Officer a aplicação dessa lei. A empresa M5 Indústria e Comércio, responsável pela marca, foi condenada em primeira instância este ano por conta do Ministério do Trabalho ter resgatado trabalhadores em condições análogas à de escravo, entre 2013 e 2014, em oficinas que produziam para ela. Agora, deve-se aguardar a decisão da segunda instância para ver ser esse processo terá início.

A lei foi proposta pelo deputado estadual Carlos Bezerra Jr. (PSDB), presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, da Cidadania, da Participação e das Questões Sociais da Assembleia Legislativa de São Paulo.

Congresso Nacional – O Senado Federal deve votar, em breve, o projeto de lei que regulamenta a emenda constitucional 81/2014 (antiga PEC do Trabalho Escravo), emenda que prevê o confisco de propriedades em que esse crime for encontrado. Seria uma boa notícia se a regulamentação do PLS 432/2013 não deixasse de fora metade do conceito de escravidão contemporânea, retirando a parte que protege a dignidade do trabalhador – o que vai facilitar a vida de empregadores flagrados com essa forma de exploração do ser humano.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, são elementos que determinam trabalho análogo ao de escravo: trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas), servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele), condições degradantes de trabalho (incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador) e jornada exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida).

O projeto quer retirar os dois primeiros elementos da caracterização de trabalho escravo, as condições degradantes e a jornada exaustiva. Para ajudar a entender a mudança, façamos paralelos: isso significa que aceita-se punir homicídios. Desde que o crime tenha sido cometido apenas com armas de fogo.

Além desse, pelo menos mais três projetos tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal a fim de reduzir os elementos que caracterizam escravidão e, portanto, a sua punição.

Nações Unidas – Por outro lado, a Organização das Nações Unidas defendeu, neste ano, a manutenção do atual conceito de trabalho escravo no vigente no Brasil. O documento divulgado pelas agências das Nações Unidas no Brasil destaca avanços significativos do país, lembrando que ele é referência internacional no combate a esse crime. Mas faz alertas contundentes sobre ameaças ao sistema de combate à escravidão e traz recomendações. "Nesse cenário de possíveis retrocessos, cabe à ONU lembrar à comunidade brasileira seu lugar de referência no combate ao trabalho escravo para a comunidade internacional", afirma a ONU.

"Em 2003, o país atualizou sua legislação criminal, introduzindo um conceito moderno de trabalho escravo, alinhado com as manifestações contemporâneas do problema, que envolve não só a restrição de liberdade e a servidão por dívidas, mas também outras violações da dignidade da pessoa humana", afirma o documento. "Esse conceito, tido pela Organização Internacional do Trabalho como uma referência legislativa para o tema, está em consonância com suas Convenções". E o texto alerta sobre os projetos que visam a mudar o conceito: "Situações em que trabalhadores são submetidos a condições degradantes ou jornadas exaustivas, maculando frontalmente sua dignidade, ficariam impunes caso essa alteração legislativa seja aprovada".

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.