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Leonardo Sakamoto

"Não tinha nenhum santo": Ou como o governador do AM minimizou um massacre

Leonardo Sakamoto

04/01/2017 21h02

"Não tinha nenhum santo."

A declaração foi dada pelo governador do Amazonas, José Melo, ao comentar sobre o massacre dos 56 mortos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, na rádio CBN.

Apesar de ter passado por batismo, comunhão e crisma, na Igreja Católica, e estudado nove anos em escola adventista, confesso não ser mais uma pessoa de fé. Por isso, tenho uma certa dificuldade em entender o que faz com que homens pecadores transformem outros homens e mulheres pecadores em santos e santas.

Fico, portanto, com a oração mais-que-sincera de um Agostinho jovem, antes de virar Santo, que gostava dos prazeres da carne: "Senhor, conceda-me castidade e continência. Mas não ainda".

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Até porque, antes de ser escolhido como santo, muita gente fez merda na vida. São Longuinho acompanhou a crucifixão de Jesus Cristo e foi responsável por perfurar, com uma lança, o seu abdome para verificar sua morte. Sebastião caçava e prendia cristãos. Camilo de Lellis era um mercenário que gastava tudo no jogo. Olga de Kiev vingou a morte de seu marido assassinando uma penca de gente e queimando cidades.

O melhor caso é o de São Dimas, conhecido como "o bom ladrão", que foi crucificado ao lado de Jesus Cristo. Disse a Jesus: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino. E disse-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso (Evangelho de Lucas 23:42-43).

Essas histórias mostram um dos pilares do cristianismo (da filosofia por trás da religião e não das atividades caça-níqueis desenvolvidas por alguns empreendimentos econômicos que se autointitulam como igrejas): acreditar que alguém que se arrepende genuinamente dos males que cometeu pode, não apenas, começar de novo, mas ser um exemplo e mudar o mundo.

Não sou um homem de fé, como disse. Não fui eu, contudo, quem trouxe os santos para minimizar o Massacre de Manaus, mas o governador do Estado do Amazonas. "Eram estupradores, eram pessoas que eram matadores que estavam lá dentro do sistema penitenciário", disse ele.

A lei brasileira, pelo menos em tese, não adota a pena de morte. E acredita na possibilidade que criminosos compreendam o dano que causaram ao seu semelhante, não cometam o mesmo erro e voltem a ser produtivos para a sociedade. Para isso, prevê, também em tese, medidas de ressocialização, que incluiria formação individual, acompanhamento psicológico e a chance de conseguir um emprego decente ao retornarem ao convívio social.

Na prática, as cadeias são escolas de delitos, depósitos de gente e escritórios do crime organizado.

Usar, portanto, aquela frase para esta situação é um tanto quanto estranho. Parece que o governador não entende nada da religião que ele mesmo parece abraçar ao usar esses seres sobrenaturais em seu discurso.

"Não tinha nenhum santo."

Mas como o Brasil desistiu de garantir o direito à vida para a população encarcerada, será que é possível ter certeza?

É por essas que não acredito na existência de um céu. Mas não tenho dúvidas de que há muita gente querendo que a vida dos outros seja um inferno.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.