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Leonardo Sakamoto

Dez razões para odiar e uma para amar São Paulo

Leonardo Sakamoto

25/01/2017 15h40

Nossa cidade completa 463 anos. Seguem dez razões para destestar a cidade e uma para amar – que lembra que as outras dez podem e devem ser mudadas. No ano passado, fiz uma lista parecida, mas achei que valia a pena ampliar.

Por que não gostar:

1) Achamos bonito ciclovias em Amsterdã, grafites em Nova Iorque, metrô em Londres, ocupações culturais em Berlim, liberdade sexual em São Francisco. Em São Paulo, muita gente nega e luta contra tudo isso. Porque acreditam que isso pertence a "lugar civilizado", declamando a profecia autocumprida da eterna barbárie.

2) Apesar das paradas e eventos LGBT e das marchas e coletivos feministas, o machismo ainda transborda na cidade. E se você disser que não, leva porrada para deixar de ser uma gayzista mentiroso ou uma feminazi que provoca a discórdia.

3) Você que mora em um lugar civilizado, talvez tenha dificuldade para entender o que é viver dentro de um grande fumódromo, como São Paulo. Convivemos com uma faixa escura preenchendo o lugar em que estaria o horizonte em boa parte do ano. Quem vive em Sampa, traga o equivalente a três cigarros por dia. E, o pior, sem ter o barato do cigarro.

4) Somos reféns dos carros. Seja porque o poder público (com nossa anuência e apoio de montadoras e empreiteiras) manteve o foco no transporte individual em detrimento a investimentos pesados no coletivo, criando uma massa que acha que civilidade é ter um carro bom e não uma boa rede de trens, trams e ônibus. A cidadania dos carros vale mais que a dos pedestres na capital paulista.

5) Se você usar bicicleta onde não há ciclovia, correrá o risco de ouvir um grito de "volta pra cuba, comunista!" por parte de educados motoristas. Se a bicicleta for vermelha, corre o risco de levar uma fechada. Se estiver de camiseta vermelha, pode ser atropelado.

6) Qual a chance de você, sendo muito rico em São Paulo, ter no seu círculo de amigos próximos pelo menos a mesma quantidade de negros e de brancos na proporção da sociedade brasileira? E sabendo como funciona a formação de parte de nossa elite (segregando, separando, limitando, excluindo), a chance de um branco fazer contato com um negro quando criança, quebrando os padrões de reprodução social, é mínima.

7) A cidade possui uma área mais rica e urbanizada em seu chamado "centro expandido", cercada pelos rios Tietê e Pinheiros, e uma periferia mais pobre. Os moradores da área mais rica, sejam eles progressistas ou conservadores, revolucionários ou reacionários, vivem em relativo conforto e segurança em comparação com quem mora do lado de fora, que sobrevive trabalhando para a riqueza do burgo.

8) Em São Paulo, quando a Justiça despeja centenas de famílias sem-teto de um terreno ocupado, elas é que são chamadas de vândalas. Jovens criam bandos para espancar e matar e moradores de rua e a população em situação de rua é que é chamada de vândala. Obras usam até trabalho escravo e quando operários migrantes se cansam de tudo e resolvem fazer greve são chamados de vândalos.

9) Exigir educação de qualidade é crime. Querer participar das decisões sobre políticas públicas é crime. Questionar seu governo é crime. Não conhecer e respeitar o "seu lugar" na sociedade é crime. E compreender o porquê de dos pobres, negros e periféricos serem chamados de vândalos e tentar se manifestar contra isso também é crime.

10) Muitos são os que defendem uma "limpeza social" de "classes perigosas" ou de "entraves ao progresso". Não é que a nossa sociedade não consegue apontar e condenar culpados pelas chacinas ocorridas aqui. Parece que ela simplesmente não faz questão. Jogamos na vala comum "culpados" – que não tiveram direito a um julgamento justo e receberam pena de morte – e "inocentes" – que mereceram, porque "se levaram bala, boa coisa não tinham feito". Seja pelas mãos do Estado ou de criminosos. O desejo mais sincero de uma parte da população é que essa faxina social seja rápida, para garantir tranquilidade, e não faça muito barulho. Para não melindrar o "cidadão de bem", que têm horror a cenas de violência.

Por que amar:

Os adeptos do "paulistanismo", o nacionalismo paulistano, patologia que prontamente vomita "São Paulo, ame-a ou deixe-a", não conseguem entender que amar um lugar não é ser dele prisioneiro ou lhe oferecer devoção cega.

Já escrevi isso aqui no ano passado. Os símbolos de São Paulo não deveriam ser os ásperos espigões da avenida Paulista, o verde do Ibirapuera, os aromas do Mercado Municipal, os sabores dos bons restaurantes e os sons da Sala São Paulo.

Isso é legal pacas. Mas o tempo derruba e o vento leva embora.

São Paulo é um rapaz que nasce, negro e pobre, no extremo da periferia e, apesar de todas as probabilidades contrárias, chega à fase adulta. É um vendedor ambulante que sai de casa às 4h30 todos os dias e só volta tarde da noite, mas ainda arranja tempo para ser pai e mãe. É a jovem que, mesmo assediada no supermercado onde trabalha, não tem medo de organizar os colegas por melhores condições. É o estudante que foge e se tranca dentro da escola para poder aprender enquanto o poder público quer expulsá-lo de lá. É a travesti que segue de cabeça erguida na rua, sendo alvo do preconceito de "homens e mulheres de bem", sabendo que não consegue emprego simplesmente por ser quem é.

São Paulo é resistência. Não aquela cantada em prosas e versos, da resistência dos ricos e poderosos, que com seus grandes nomes deixaram grandes feitos que podem ser lidos em grandes livros ou vistos na TV.

Mas a resistência solitária e silenciosa de milhões de anônimos que não possuem cidadania plena, mas tocam a vida mesmo assim.

Se uma cidade é a soma das histórias de sua gente, então São Paulo é algo pela qual vale a pena lutar.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.