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Leonardo Sakamoto

O brasileiro binário e sua guerra santa em nome da ignorância

Leonardo Sakamoto

10/04/2017 18h17

Você pode criticar e discordar de Rachel Sheherazade e, ao mesmo tempo, indignar-se pelo assédio machista que ela sofreu de Silvio Santos, em cadeia nacional. Neste domingo (10), durante a transmissão do Troféu Imprensa, o "patrão" disse que havia contratado a apresentadora não para dar opinião mas para "continuar com a sua beleza, com a sua voz, para ler as notícias".

Você pode criticar a atuação violenta da polícia militar em uma operação realizada em uma comunidade pobre, denunciar o envolvimento de policiais em chacinas e milícias e afirmar que sua formação precisar ser alterada e sua estrutura desmilitarizada. E isso não significa que está defendendo o assassinato de trabalhadores da segurança pública, nem que acredita que a polícia não deva existir.

Você pode criticar Donald Trump ou mesmo a política internacional intervencionista dos Estados Unidos sem que, para isso, precise abraçar o açougueiro e ditador sírio Bashar al-Assad ou mesmo o presidente russo Vladimir Putin, que não leva muito a sério a dignidade humana.

Você pode afirmar que houve avanços em áreas como educação e saúde em Cuba e, ao mesmo tempo, reconhecer a violência com a qual o regime trata seus opositores ou as graves limitações impostas à liberdade de expressão. Da mesma forma, você pode ser crítico a uma parte da elite venezuelana e seu tosco comportamento golpista e, ao mesmo tempo, criticar o governo local e seu comportamento autoritário e antidemocrático. Você pode adorar muita coisa nos Estados Unidos, da música à produção intelectual, passando pelas pessoas e cidades, e ser crítico às políticas de seu governo ou à ideologia de parte de sua elite econômica.

Você pode afirmar que há excessos, injustiças e sinais de partidarismo em operações de combate à corrupção sem dizer que caixa 2 é normal e que os partidos envolvidos não cometeram nenhum crime.

Você pode. Mas talvez não faça isso.

Porque defenda um mundo melhor para os seus, mas não para o mundo. Porque não consegue sentir empatia por quem pense diferente, tenha outra cor de pele ou uma orientação sexual que não é igual à sua. Porque acha que o adversário é um inimigo. Porque acredite que mais importante que construir pontes é executar vinganças. Porque chama de "verdade" só aquilo com a qual concorda e de "mentira" tudo do qual discorda. E, com base nisso, cria sua noção de "bem" e de "mal", excluindo-se sempre deste último. E, a partir daí, elege seus "heróis" e "vilões". E vai à guerra, que considera santa, para matar ou morrer.

Nutro uma certa inveja por pessoas que demonstram um pensamento binomial. Para eles, a vida é tão simples! É A ou Z – e só. Não existe outra coisa entre um polo e outro, nenhuma área cinzenta, nenhuma dúvida, nada. Enfim, para elas o mundo não é complexo – as pessoas idiotas é que tentam turvar aquilo que é certo, confundindo os "homens e mulheres de bem" ou os "revolucionários".

Daí, para a vida fazer sentido, dizem que todos têm que abraçar uma ideia e simplificar o mundo ao máximo. Quem não consegue fazer isso, sem problema, eles dão uma mãozinha, taxando você de "isentão". Ou pior. Se você não é hétero é homo. Se defende políticas para os mais pobres, não pode ter um smartphone. Ou apoia a campanha de terra arrasada do governo contra as drogas ou é um usuário de crack que rouba a mãe pelo vício. Acha que um partido político representa toda a maldade no mundo ou acredita que da boca de seus líderes fluam rios de leite e mel.

Nós não estamos em uma guerra. Ou pelo menos não deveríamos estar.

Escrevi há algum tempo que deveria haver um círculo do inferno especialmente reservado para os que não aceitam dialogar com quem pensa diferente. O mesmo vale para acredite que o mundo é dividido em um grande bem contra o mal.

Discordo visceralmente de muitos textos que leio, mas nem por isso acho que eles não tenham o direito de vir a público (a menos que tenham sido produzidas para incitar a violência ou difamar outras pessoas). Pelo contrário, discordo, mas defendo o direito de que seja dito. A saída para contrapor uma voz não é o silêncio, mas sim outra voz (o fato de pessoas que defendem um ponto de vista semelhante ao meu não terem conseguido construir uma alternativa – ainda – diz tanto sobre a nossa incapacidade de comunicação quanto sobre o poder de fato do outro).

Muitos simplesmente repetem mantras que lêem na internet, ouvem em bares ou vêem na igreja e não param para pensar se concordam ou não realmente com aquilo. É um Fla-Flu, um nós contra eles cego, que utiliza técnica de desumanização, tornando esse outro uma coisa sem sentimentos. Isso é muito útil durante eleições polarizadas, mas péssimo para o cotidiano.

É mais fácil pensar de forma binária. Mas, dessa forma, a vida vai ficando mais pobre. Sem o direito ao convívio diário com aqueles que pensam de forma diferente, estancamos em nossas posições, paramos de evoluir como humanidade. Do outro lado sempre estará um monstro e do lado de cá os santos.

As relações que se estabelecem no "lado de fora" da internet ainda são uma das melhores formas de rompermos a limitação do contato com a diferença criada pelos algoritmos das redes sociais – que mostram em nossas timelines aquilo que gostaríamos de ver, tornando o mundo um lugar mais quentinho. O problema é que bolhas digitais matam, aos poucos, a empatia.

E a falta de empatia faz com que o pedido de socorro de grupos sociais que não são nossos familiares ou amigos, aos poucos, se torne tão irrelevante quanto um pedido de amizade de um desconhecido online.

"Ah, mas o 'outro lado' não faria o mesmo por mim", afirmam alguns.

Mas, daí, fica a pergunta: Você forma sua opinião e constrói seus princípios através de empatia, vivência, leitura e reflexão ou é um grande vazio que apenas responde aos estímulos dos outros?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.