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Leonardo Sakamoto

Temer assume-se autoritário ao se comparar com governo de 113 anos atrás

Leonardo Sakamoto

18/04/2017 13h08

O governo Temer planeja veicular campanha publicitária comparando a resistência à Reforma da Previdência à Revolta da Vacina, ocorrida há quase 113 anos, quando brasileiros se insurgiram contra a vacinação obrigatória, de acordo com reportagem da Folha de S.Paulo.

No que pese o absurdo de comparar fatos de contextos históricos e realidades diferentes com o objetivo de convencer a população (e ainda por cima usando dinheiro de impostos), o governo Temer foi de uma sinceridade atroz.

Poucos negam a necessidade de fazer mudanças na Previdência para garantir a aposentadoria presente e futura dos brasileiros. Da mesma forma, os cidadãos do Rio de Janeiro, onde ocorreu a revolta, também queriam ver erradicadas a varíola, a febre amarela, a peste bubônica, a malária, o tifo e a tuberculose de suas vidas.

O problema de ambas não é o objetivo final, mas como ele foi alcançado.

"Tudo o que é novo assusta", diz o mote da campanha publicitária de Temer. Mas o que está acontecendo não é novo. É o Estado, novamente, não dialogando com a sociedade e sendo autoritário com a população mais pobre.

O Brasil daquela época era uma república oligárquica e autoritária. Para cumprir um plano de saúde pública da então capital do país, casas foram invadidas e a privacidade violada, principalmente dos mais pobres e vulneráveis.

A vacinação tornou-se obrigatória sem que houvesse uma comunicação efetiva sobre a necessidade e a importância desse processo – panfletos foram entregues a uma população com altas taxas de analfabetismo. De uma hora para outra, quem não estivesse vacinado não poderia ser matriculado em escolas, contratado em empresas, ter casamentos celebrado. Pessoas eram presas não apenas durante protestos, mas qualquer um com o qual a polícia não fosse com a cara durante o motim apanhava e era recolhido às delegacias. O saldo aponta para mais de 110 feridos, 30 mortos e 945 presos.

Não que este tenha sido o plano inicial de Oswaldo Cruz, o médico sanitarista convocado para a tarefa, mas o projeto de "higienização" pôs abaixo casarões, sobrados e cortiços, expulsando as famílias mais pobres do centro. Um processo de gentrificação, realizado sob porrada, com a justificativa do bem-estar da população.

O Brasil de hoje é uma república que ainda convive com oligarquias, que controla de forma autoritária as classes mais pobres e com um sistema de representatividade política desacreditado. Se a maioria da população não é iletrada como antes, agora as "explicações" sobre a reforma são superficiais ou em linguagem técnica – para ninguém entender nada mesmo. A fim de cumprir a meta de garantir que o sistema de aposentadorias seja adaptado a um país que envelhece rapidamente, representantes do governo federal e seus aliados parlamentares têm promovido o terror junto à população, veiculando anúncios de que o país vai se tornar um monte de escombros se o texto da reforma não for aprovado do jeito que o governo quer. Até a "compra" de parlamentares com emendas e distribuição de cargos públicos tem sido proposta.

Assim como em 1904, o governo não discute decentemente com a população seu plano, aplicando-o de cima para baixo. Ao mesmo tempo, algumas manifestações contra as reformas do governo federal têm sido reprimidas. Os maiores prejudicados com as mudanças propostas pelo governo são os trabalhadores mais pobres e parte da classe média, que dependem das aposentadorias para ter um mínimo de dignidade em seu futuro.

Ao fazer essa comparação, portanto, o governo Temer parece ver os brasileiros de forma parecida com a qual o presidente Rodrigues Alves viu os cariocas do início do século passado: como idiotas e ignorantes que não são capazes de entender o que é melhor para a sua própria vida. E que não sabem que não se faz um omelete sem quebrar alguns ovos. O problema é que os ovos quebrados são sempre os mais pobres.

A diferença daquele momento e de agora é que há alternativas sim. E o governo, ao invés de enfiar algo goela abaixo e à toque de caixa, deveria promover um grande debate nacional sobre o tema.

Sou contra fazer comparações que desconsideram contextos históricos distintos. Mas se Michel Temer quer cultivar essa seara, por que reclama que há quem compare sua chegada ao poder, em 2016, com o golpe militar de 1964?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.