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Leonardo Sakamoto

Nos 129 anos da Lei Áurea, o combate à escravidão está ameaçado no Brasil

Leonardo Sakamoto

13/05/2017 08h27

O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer, diante das Nações Unidas, a persistência de formas contemporâneas de escravidão. Foi o primeiro a criar uma política nacional efetiva de libertação de trabalhadores em 1995. O primeiro a lançar um plano integrado de combate ao crime em 2003 e a publicar, periodicamente, um cadastro com os infratores a partir do mesmo ano. Criou o primeiro pacto empresarial multisetorial contra a escravidão em 2005. E implementou ações pioneiras de repressão e prevenção que se tornaram referência em todo o mundo.

Contudo, em 2017, tornou-se o primeiro país a ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em um caso de trabalho escravo por omissão. Seu governo foi o primeiro que se tem notícia a recorrer à Justiça para deixar de cumprir uma medida considerada exemplar pelas Nações Unidas no combate à escravidão. E é o primeiro país em que membros de seu Congresso Nacional lutam com unhas dentes para que o enfrentamento do crime seja reduzido exatamente por conta de seu sucesso.

Em outras palavras, cansado de ser vitrine internacional, parece que o Brasil deseja, agora, ser vidraça.

Criada por Fernando Henrique Cardoso (que reconheceu diante das Nações Unidas, em 1995, a persistência de formas contemporâneas de escravidão em nosso território), elevada à condição de exemplo internacional por Luiz Inácio Lula da Silva (que ampliou os mecanismos de combate a esse crime) e mantida por Dilma Rousseff, a erradicação do trabalho escravo tem sido uma política de Estado e não de governo.

Desde então, mais de 50 mil pessoas foram resgatadas de fazendas de gado, soja, algodão, frutas, cana, carvoarias, canteiros de obras, oficinas de costura, entre outros. Nesse período, o trabalho escravo contemporâneo deixou de ser visto como algo restrito a regiões de fronteira agropecuária, como a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal e, paulatinamente, passou a ser fiscalizado também nos grandes centros urbanos.

Fiscalização do Ministério do Trabalho resgata trabalhadores em situação análoga à de escravo no Pará (Foto: Leonardo Sakamoto)

Milhões de reais em condenações e acordos trabalhistas foram pagos. Centenas de empresas aderiram ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, comprometendo-se a cortar negócios com quem se utiliza desse crime. Além de um Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, temos também estados e municípios engajados em planos regionais. Programas de prevenção e reinserção passaram a ser implementados envolvendo de jovens que ainda não estão em idade laboral até adultos resgatados.

Mas a política nacional, que sempre enfrentou dificuldades por setores do poder econômico, passou a sofrer ataques pesados. E, ao que tudo indica, a cúpula do governo federal, com louváveis exceções, vem desistindo de protege-la. Se nada for feito, vamos retroceder 22 anos no combate ao trabalho escravo contemporâneo em nome do crescimento econômico que privilegia os que muito têm em detrimento aos mais pobres.

Os ataques são simultâneos, em várias frentes.

Redução do conceito

Há, pelo menos, três propostas semelhantes tramitando no Congresso Nacional para reduzir o conceito de trabalho escravo. Um deles é o projeto de lei 3842/2012, do deputado federal Moreira Mendes (PSD-RO). As outra estão no projeto de atualização do Código Penal, por sugestão dos então senadores Luiz Henrique da Silveira (PMDB-SC) e Blairo Maggi (PP-MT) – hoje, ministro da agricultura, e no projeto que regulamenta a emenda 81/2014 (antiga PEC do Trabalho Escravo, que prevê o confisco de propriedades em que trabalho escravo for encontrado e sua destinação à reforma agrária ou ao uso habitacional urbano), por sugestão do senador Romero Jucá (PMDB-RR).

Todos querem retirar condições degradantes e jornada exaustiva do artigo 149 do Código Penal, que conceitua o crime.

Hoje, são quatro elementos que podem definir escravidão contemporânea no Brasil: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes (abaixo da linha de dignidade, que põem em risco a saúde, a segurança e a vida do trabalhador) e jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde, segurança vida).

Parte da  bancada ruralista no Congresso Nacional afirma ser difícil conceituar o que sejam esses dois últimos elementos, o que produziria "insegurança jurídica". Querem que as condições em que se encontram os trabalhadores, por mais indignas que sejam, não importem para a definição de trabalho escravo, mas apenas se ele está em cárcere privado ou não.

Varas, tribunais e cortes superiores utilizam a atual definição desse artigo. Em decisões da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, fica clara a compreensão de que eles entendem o que são esses elementos – tanto que já receberam denúncias de deputados e senadores por esse crime. Diferentes agências das Nações Unidas divulgaram documento conjunto, em 2016, apoiando o conceito legal brasileiro e sua aplicação.

Há políticos que afirmam que auditores fiscais e procuradores do trabalho consideram como escravidão a pequena distância entre beliches, a espessura de colchões, a falta de copos descartáveis. O que não é verdade. Qualquer fiscalização do governo é obrigada a aplicar multas por todos os problemas encontrados. Mas não são essas as autuações que configuram trabalho escravo.

Basta uma rápida pesquisa junto ao Ministério do Trabalho (cuja base de dados está disponível a qualquer cidadão) e descobre-se dezenas de outras autuações que o empregador em questão recebeu: trabalhadores que bebiam a mesma água do gado, que eram obrigados a caçar no mato para comer carne, que ficavam em casebres de palha em meio às tempestades amazônicas, que pegavam doenças ou perdiam partes do corpo no serviço e eram largados sós.

O fato é que com o confisco de propriedades tendo sido aprovado, em 2014, após 19 anos de trâmite legislativo, a bancada ruralista passou a atuar para afrouxar o conceito. É aquela coisa: concordo que se puna assassinato desde que sejam apenas os cometidos com facas e punhais.

Ou seja, praticamente condenar só quem usa pelourinho, chicote e grilhões, sendo que os tempos mudaram, a escravidão é outra e os mecanismos modernos de escravização adotados são sutis. Promovem, dessa forma, a "insegurança jurídica" no campo e na cidade, criando caos junto aos produtores que seguem a lei e sabem bem o que fazer e o que não fazer.

Com a mudança no conceito, milhares de pessoas que, hoje, poderiam ser chamadas de escravos modernos simplesmente vão se tornar invisíveis. Vamos resolver o problema chamando-o por outro nome.

Trabalhadores produzindo peças para oficina responsabilizada por trabalho escravo (Foto: MPT/Divulgação)

Falta de transparência

O Brasil censurou o cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo, conhecido como a "lista suja", por 27 meses. E só voltou a publicá-lo graças a uma batalha travada pelo Ministério Público do Trabalho.

Criada em 2003 pelo governo federal, a "lista suja" é considerada pelas Nações Unidas um dos principais instrumentos de combate ao trabalho escravo no Brasil e apresentada como um exemplo global por garantir transparência à sociedade e um mecanismo para que empresas coloquem em prática políticas de responsabilidade social.

Em meio ao plantão do recesso de final de ano de 2014, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, garantiu uma liminar à Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) suspendendo a "lista suja". A entidade questionou a constitucionalidade do cadastro de empregadores, afirmando, entre outros argumentos, que a inclusão na lista suja era realizada sem o direito de defesa dos autuados e era necessária uma legislação específica para regulá-lo.

Após a publicação de uma nova portaria interministerial (número 4, de 11 de maio de 2016), com mudanças em critérios de entrada e saída do cadastro, a ministra Cármen Lúcia suspendeu a proibição.

"Não se há de desconhecer que os pontos questionados na peça inicial da ação foram sanados na Portaria superveniente e revogadora daquela outra pelo que também por isso não se sustentaria eventual argumento quanto ao indevido seguimento da presente ação", avaliou a ministra, hoje presidente do STF.

A partir desse momento, o ministério do Trabalho poderia ter divulgado uma nova atualização da lista, mas não o fez.

No dia 19 de dezembro de 2016, a Justiça do Trabalho ordenou, em decisão liminar, que o governo federal voltasse a publicar, em até 30 dias, o cadastro, atendendo a uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho, que denunciou a omissão do poder público ao esconder tais informações. O tema ganhou a mídia nacional e internacional.

"A obrigação do Ministério do Trabalho em divulgar os nomes dos empregadores que exploram o trabalho escravo decorre de compromissos assumidos pela República Federativa do Brasil em âmbito internacional, os quais impedem retrocessos nos passos já trilhados em prol da erradicação da escravidão contemporânea", afirmou o procurador do Trabalho Tiago Cavalcanti, que está à frente da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho.

Em sua decisão de dezembro, o juiz Rubens Curado Silveira, 11a Vara do Trabalho de Brasília, afirmou que "há mais de uma década, esse cadastro vem se destacando entre as medidas relevantes no enfrentamento do tema, em perfeito alinhamento aos princípios constitucionais da publicidade e da transparência".

O Ministério do Trabalho solicitou mais prazo ao juiz a fim de apresentar sua defesa, o que foi concedido. Mas, passado o tempo, os argumentos continuaram não sendo aceitos para a concessão da liminar. Insatisfeito, o governo levou o pleito ao Tribunal Regional do Trabalho, quando recebeu nova negativa por parte do presidente da corte, o desembargador Luís Vicentin Foltran.

"A inclusão de um nome no cadastro constituiu a etapa final de todo um procedimento fixado por normas específicas editadas, repita-se, pelo próprio Ministério do Trabalho, órgão da Administração Federal responsável e estruturado para apurar as denúncias de irregularidades e fiscalizar o trabalho em todo o território nacional", afirmou. "Impedir a divulgação do cadastro, como registrado na decisão liminar, 'acaba por esvaziar, dia a dia, a política de Estado de combate ao trabalho análogo ao de escravo no Brasil'."

O governo recorreu e obteve do presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins Filho, a liminar garantindo a suspensão da obrigação de divulgar a lista. "O nobre e justo fim de combate ao trabalho escravo não justifica atropelar o Estado Democrático de Direito, o devido processo legal, a presunção de inocência e o direito à ampla defesa, concedendo liminar ao se iniciar o processo para se obter a divulgação da denominada 'lista suja' dos empregadores sem que tenham podido se defender adequadamente", afirmou.

O Ministério do Trabalho criou um grupo de trabalho em dezembro de 2016, para discutir as regras de entrada e saída de nomes da "lista suja". O GT contou com órgãos do próprio ministério, com outras áreas do governo federal, como a Casa Civil e a Advocacia Geral da União, representações patronais e sindicais. O MTE afirmou que "eventuais inclusões indevidas não apenas redundariam em injustiças com graves consequências a cidadãos e empresas, gerando desemprego, como acarretariam nova judicialização do tema, comprometendo a credibilidade do cadastro".

Então, o ministro Alberto Luiz Bresciani, do Tribunal Superior do Trabalho, deferiu, no dia 14 de março, liminar obrigando o governo federal a divulgar a relação. Sorteado como relator do caso, ele tornou sem efeito a decisão do presidente do TST, que havia decidido a favor do governo federal.

Bresciani considerou que o governo federal não poderia ter entrado com pedido de suspensão da liminar junto ao TST uma vez que não estavam esgotados os recursos no Tribunal Regional do Trabalho da 10a Região. Ele não julgou o mérito do caso, mas ordenou que ele retornasse ao TRT. Ou seja, volta a valer a última decisão, proferida pelo desembargador Pedro Luís Vicentin Foltran, presidente do Tribunal, de garantir a divulgação da lista.

"A União manejou pedido de suspensão de liminar e de antecipação de tutela, perante o TST, na mesma data em que o Exmo. Sr. Desembargador Presidente do TRT da 10a Região, indeferiu o pedido de suspensão dos efeitos da tutela provisória concedida na ação civil pública, situação que revela a ausência de esgotamento das vias recursais", afirmou Bresciani em sua decisão.

"Necessário frisar que o princípio do devido processo legal é expressão da garantia constitucional de que as regras pré-estabelecidas pelo legislador ordinário devem ser observadas na condução do processo, assegurando-se aos litigantes, na defesa dos direitos levados ao Poder Judiciário, todas as oportunidades processuais conferidas por Lei, desde que manejadas dentro de padrão de legalidade."

Por fim, o Ministério do Trabalho recorreu ao Supremo Tribunal Federal, mas, acabou por obedecer a decisão judicial e publicou o cadastro no dia 23 de março de 2017. O grupo de trabalho foi desmobilizado e a discussão transferida para a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. O Ministério Público do Trabalho recebeu a promessa do ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira de que manteria a publicização da lista.

Mas há também projetos de lei tramitando no Congresso Nacional com o objetivo de enfraquecer o cadastro de empregadores.

A sociedade brasileira depende de informações oficiais e seguras sobre as atividades do Ministério do Trabalho na fiscalização e combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Informação livre é fundamental para que as empresas e outras instituições desenvolvam suas políticas de gerenciamento de riscos e de responsabilidade social corporativa.

Transparência é fundamental para que o mercado funcione a contento. Se uma empresa não informa seus passivos trabalhistas, sociais e ambientais, sonega informação relevante que pode ser ponderada por um investidor, um financiador ou um parceiro comercial na hora de fazer negócios.

 

Na foto, duas crianças, uma de 13 e outra de 14 anos, resgatadas junto a adultos, todos em condições de trabalho escravo contemporâneo, em uma fazenda no Pará (Foto: Leonardo Sakamoto)

O impacto da terceirização

Uma das consequências mais polêmicas do projeto que ampliou a terceirização legal para todas as atividades de uma empresa, aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pela Presidência da República em 2017, é a possibilidade de usar pequenas empresas terceirizadas como um artifício usado por empresas maiores para tentar se eximir de responsabilidade pelos trabalhadores em situação análoga à de escravo.

A terceirização da atividade-fim era proibida graças a uma regra do Tribunal Superior do Trabalho editada em 1994, a Súmula 331. O tribunal só permitia a subcontratação de atividades especializadas sem relação direta com o objetivo principal da empresa, como por exemplo segurança e limpeza.

Evidente que o país necessita de uma legislação mais clara quanto às regras de terceirização – o que é fundamental para proteger categorias que, hoje, estão fragilizadas ou sob a aba de sindicatos que representam apenas os interesses de seus dirigentes. Mas com a aprovação do projeto 4302/1998, a tendência é de grandes empresas concentrarem os lucros e poucos empregados, com uma constelação de empresas sem qualquer lastro financeiro ou independência, mas com todos os empregados. Periodicamente, tais empresas encerram as portas, deixando para trás enorme passivo, gerando avalanches de reclamações trabalhistas.

A empresa contratante deverá arcar com os direitos trabalhistas e previdenciários dos empregados da contratada apenas quando fracassar a cobrança da empresa contratada, ou seja, responsabilidade subsidiária. Se e quando o trabalhador decidir reclamar.

No caso de trabalho análogo ao de escravo, em que muitas fazendas e empresas se utilizam de cooperativas e empresas fajutas em nome de prepostos para burlar direitos trabalhistas, o projeto vai facilitar a impunidade das contratantes que, no máximo, terão que bancar salários atrasados, mas sem punição pelos trabalhadores escravos libertos.

O Núcleo de Estudos Conjunturais da Universidade Federal da Bahia levantou todos os 86 resgates ocorridos nesse estado entre 2003 e 2016 e descobriu que 76,7% de todos os casos envolviam trabalhadores terceirizados. Os intermediários assumiam diversas aparências, de "gatos" a pessoas jurídicas formalmente estabelecidas. Os tomadores de serviço atuavam em vários setores e incluíam desde comerciantes até grandes construtoras, frigoríficos e multinacionais do chamado agronegócio. O objetivo era poupar grandes empresas dos custos trabalhistas.

Agora, essas situações vão ter um verniz de legalidade da nova lei e será mais difícil combater esse crime.

Exatamente por reconhecer vínculos empregatícios onde ocorria terceirização ilegal é que o governo federal e o Ministério Público do Trabalho puderam responsabilizar grandes empresas, como as do setor de vestuário, pela exploração.

Nas cidades, a nova lei vai facilitar a manutenção de oficinas de costura que contratam trabalhadores de forma precária ou os submetem a condições análogas às de escravo, muitos dos quais imigrantes latino-americanos pobres que vêm produzir para os cidadãos brasileiros. Oficinas que, não raro, surgem apenas para que a responsabilidade dos custos trabalhistas saiam das costas de confecções maiores e de grandes e conhecidas marcas de roupas brasileiras e internacionais.

Trabalhador libertado mostra a fiscais água que bebia, a mão machucada por falta de luvas na aplicação de pesticidas e o dedo que perdeu na produção (Foto: Leonardo Sakamoto)

Responsabilidade do Poder Público

Grandes entidades patronais vêm intensificando a resistência aos avanços sociais em diversos fóruns. No âmbito da Organização Internacional do Trabalho, vêm se tornando cada vez mais frequentes as ameaças de boicote aos debates tripartites sobre temas tão diversos quanto a responsabilidade das empresas sobre as condições de trabalho em cadeias produtivas globais, o direito fundamental dos trabalhadores à greve e a definição de trabalho forçado e o alcance dos dispositivos do Protocolo Adicional à Convenção 29, recentemente publicado, que trata do tema.

Tentam, não raro, interditar o debate democrático e a reafirmação dos direitos humanos, caminhos para garantir um modelo sustentável. Sem isso, a tão proclamada paz social que consta da Constituição da maioria dos Estados modernos corre o risco de se tornar letra morta.

Nos corredores do Palácio do Planalto e da Esplanada dos Ministérios, já no governo Dilma Rousseff havia quem defendesse reservadamente que melhor seria deixar o conceito de trabalho escravo retroceder, a "lista suja" ser derrubada de vez e a terceirização de todas as atividades de uma empresa passar porque a situação atual cria problemas para setores econômicos. Para o bem de empresas envolvidas nas execuções de políticas públicas e, provavelmente, para os doadores de campanha.

Durante o governo Michel Temer, contudo, o sistema brasileiro de combate ao trabalho escravo entra em um momento de refluxo e de dúvida. Tanto pela falta de apoio do poder público para implementar novas medidas previstas do II Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, como pelas suas próprias ações para tornar pouco efetivas as políticas existentes. Os recursos do Ministério do Trabalho para fiscalização, por exemplo, duram até o meio do ano.

As ameaças ao sistema ocorrem por ataques diretos às políticas (como na questão da "lista suja" e do conceito) quanto pelo processo de desregulamentação do mercado de trabalho brasileiro (como é o caso da aprovação da lei da terceirização ampla e a própria Reforma Trabalhista – que estava em curso no momento em que este texto foi escrito).

Em seu documento divulgado no ano passado, as agências das Nações Unidas no Brasil trouxeram oito recomendações ao país para que essas ameaças não signifiquem retrocessos permanentes: 1) Manter o atual conceito de trabalho escravo contemporâneo, previsto no artigo 149 do Código Penal; 2) Reativar a "lista suja" do trabalho escravo; 3) Fortalecer a inspeção do trabalho; 4) Fortalecer programas de assistência às vítimas; 5) Investigar, julgar, punir e executar sentenças condenatórias sobre trabalho escravo de maneira célere; 6) Ratificar a Convenção sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das Suas Famílias; 7) Garantir que empresas e o Estado observem os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos e fortalecer o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo; 8) Ratificar o Protocolo Adicional à Convenção número 29 da OIT, que atualiza a política de prevenção ao trabalho escravo em todo o mundo.

Em 2014, o Brasil saiu de uma eleição presidencial polarizada como nunca em sua história recente. E, nesse ambiente tóxico, a efetivação dos direitos humanos foi transformada em palco de batalha. Parte da população passou a acreditar que documentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, ou a Constituição Federal, de 1988, são textos radicais de esquerda que não merecem respeito. E que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é que trava o desenvolvimento da nação.

O Estado tem a função de mediar conflito entre empregados e empregadores, criando regras para a compra e venda da força de trabalho que equilibrem a disputa (Poder Legislativo), fiscalizando se as regras são cumpridas (Poder Executivo) e julgando e decidindo quando há uma disputa travada (Poder Judiciário).

Mas, no Brasil, mesmo em governos autoproclamados progressistas, a vontade de empresários sempre esteve mais representada que a dos trabalhadores. E não estou falando apenas da compra de políticos por construtoras reveladas nos últimos escândalos. Quem financiou e elegeu a maior parte dos deputados e senadores não foram trabalhadores, mas grandes empresas. Por vezes apostando em concorrentes adversários para que, seja qual fosse o resultado, saíssem vencedoras. Isso falando de doações de campanha.  Levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) apontou que 221 entre os 513 deputados federais eleitos em 2014 possuíam estabelecimentos comerciais, industriais, de prestação de serviço ou do segmento rural, de acordo com sua declaração de bens. Ou seja, são eles próprios os patrões.

Da mesma forma, o governo Michel Temer, acuado por denúncias de corrupção, segue vivo em 2017 pelo endosso de grandes empresários. Prometeu a eles entregar uma redução drástica nos direitos trabalhistas, na seguridade social e nas prioridades do Estado em geral. Não temos ainda capacidade de entender o tamanho do estrago, mas ele afetará a qualidade de vida das futuras gerações.

Se não conseguirmos barrar processos de redução de direitos em curso, garantindo que seres humanos não se tornarem escravos diante das necessidades de indivíduos, empresas e do mercado global, não seremos capazes de adentrar o futuro. Pelo contrário, ficaremos andando em círculos, sob influência de um período de barbárie que imaginávamos ter deixado para trás.

Após 129 anos da Lei Áurea e mais de duas décadas depois de o sistema de combate ao trabalho escravo contemporâneo ter sido implantado no Brasil, não temos muito o que comemorar. 

Pelo contrário, neste 13 de maio, ao que tudo indica, a batalha mais importante dessa história recente, realizada em nome da manutenção do quinhão de dignidade conquistado até agora, está apenas começando.

Escrevi este artigo para o livro "Combate ao trabalho escravo: conquistas, estratégias e desafios", de Cristiano Paixão e Tiago Muniz Cavalcanti (orgs.), Ministério Público do Trabalho, 2017 (no prelo).

 

A 100 km da capital paulista, vítimas de trabalho escravo produziam carvão (Foto: Repórter Brasil)

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.