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Leonardo Sakamoto

Vivam as cotas na USP! Abaixo a meritocracia aristocrática hereditária!

Leonardo Sakamoto

10/07/2017 22h25

A palavra "meritocracia" funciona em um debate como um coringa num jogo de buraco: quando falta carta para bater, ela aparece para salvar uma sequência incompleta.

Não fica lá a coisa mais bonita do mundo, mas resolve a vida porque muita gente mundo aceita que aquela carta pode preencher um vazio. Exemplos:

"Discordo de cotas raciais e sociais no vestibular porque defendo a meritocracia."

"A preferência para pessoas com deficiência em seleções de contratação é, a meu ver, um erro porque não segue a meritocracia."

"Se vivêssemos em uma sociedade em que a meritocracia valesse algo, não haveria porcentagem mínima obrigatória de mulheres candidatas em cada partido nas eleições."

Eu não sou contra que competência e experiência individuais sejam parâmetros de avaliação. Uma coisa é o mérito em si. Outra, um sistema de poder que utiliza um discurso deturpado sobre o mérito para manter a desigualdade social como o elemento que nos define como nação.

As pessoas não tiveram acesso aos mesmos subsídios e direitos para começarem suas caminhadas individuais e, portanto, partem de lugares diferentes.

Uns tendo tudo desde sempre, comida e livros.

Outros tendo que escolher entre comprar comida ou um livro.

E outros levando enquadro da polícia, que acha que eles roubaram o livro de alguém simplesmente por serem negros, após terem feito a escolha de comprá-lo ao invés da comida.

Os três podem chegar ao "topo". Mas se o primeiro caso alcança o cume mais vezes, o segundo é um em cada 100 mil e o terceiro um em cada milhão. Por isso, "histórias de superação" são contadas e recontadas à exaustão: porque são úteis para convencer os outros que se um consegue, todos podem. Dependeria apenas de cada um e de sua força de vontade e dedicação.

Ao assumirmos essa mentira como verdade, jogamos a responsabilidade de crimes históricos como a escravidão nos descendentes daqueles que, uma vez libertos, não foram inseridos na sociedade. Nem tiveram acesso a direitos para que pudessem ser donos de suas próprias vidas.

Há muita gente contrária a encontrar formas de equalizar as condições historicamente desproporcionais. Acreditam que a única maneira de garantir Justiça é tratar desiguais como iguais e aguardar que as forças do universo façam o resto.

E esse discurso é tão bem ensinado que, não raro, é apoiado por pessoas que, apesar de largarem em desvantagem, conseguiram "chegar lá". E ouvimos coisas como: "Tive uma infância muito pobre e venci mesmo assim. Se eu consegui, todos conseguem". Parabéns. Mas ao invés de pensar que todos têm que comer o pão que o diabo amassou como você, não seria melhor pensar que um mundo melhor seria aquele em que isso não fosse preciso?

Como não é possível acabar com o direito a qualquer herança (o que, hipoteticamente levaria cada geração a começar do zero, mas destruiria/transformaria a sociedade como a conhecemos), o jeito é continuar apoiando medidas compensatórias e que tratam diferentes de forma diferente.

(E seguir demonstrando muito amor e paciência com quem acha que "quem não vence por conta própria é vagabundo".)

Por fim, há um pessoal que não se indigna diante do fato da mulher negra ganhar, em média, muito menos que o homem branco para uma mesma função. Indigna-se com quem diz que racismo existe no Brasil.

Não ficam revoltados diante do genocídio de jovens pobres e negros na periferia da grandes cidades. Revoltam-se com a filha negra da empregada doméstica se sentar no mesmo banco de faculdade que eles.

Não acham preconceito dar porrada no sujeito que foi acusado de roubar o próprio carro no estacionamento do supermercado simplesmente por ser negro. Para eles, preconceito é a mais importante instituição acadêmica brasileira, a Universidade de São Paulo, estar (finalmente) adotando um sistema de cotas para oriundos da escola pública, negros e indígenas.

Seria cômico se não fosse trágico o perigo representado por uma minoria numérica (com direitos assegurados) que se manifesta de forma organizada – e, por vezes, violenta – diante da luta de uma maioria por sua dignidade. Um grupo que vai perdendo a vergonha de reivindicar a manutenção de privilégios, garantindo, dessa forma, o espaço que já é seu – conquistado por violência, a ferro e fogo.

Nessas horas, só posso citar a sabedoria presente na mitologia cristã, uma das melhores passagens de toda a bíblia, em minha humilde opinião. Evangelho de Lucas, capítulo 23: Pai, perdoai. Eles não sabem o que fazem.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.