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Leonardo Sakamoto

Se prendesse corruptos com a sanha com que caça pobres, Rio estaria melhor

Leonardo Sakamoto

11/08/2017 15h12

Soldado no complexo da Maré em 2014, ano da Copa. Foto: Ricardo Moraes/Reuters

Quase 60% dos novos detentos ingressaram no sistema penitenciário do Rio de Janeiro entre 2013 e 2016, quando o Estado recebeu a Copa das Confederações, a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. A informação é de reportagem de Paula Blanchi, do UOL, publicada nesta sexta (11). As 16.788 pessoas que foram presas neste período representam um terço do total.

Promotores e defensores públicos ouvidos pela reportagem afirmam acreditar que há uma relação direta entre os megaeventos que a cidade recebeu e o aumento do encarceramento. Ou seja, para garantir a sensação de segurança na parte da cidade que é um cartão postal, muita gente do morro e da periferia foi recolhida.

Faço a distinção porque apenas muito recentemente, com os desdobramentos da Operação Lava Jato, um grupo das elites política e econômica cariocas experimentaram o xadrez. Até então, a política de segurança pública voltada ao encarceramento e ao controle da população era focada na xepa pobre. Ironicamente, o ex-governador Sérgio Cabral, hoje hóspede do setor prisional, foi ele próprio um dos artífices dessa política.

É um absurdo a forma como foram feitas as ocupações e ações policiais em bairros pobres no Rio de Janeiro, nesse período, com o objetivo de garantir a segurança sob a justificativa dos grandes eventos na cidade. Nelas, os direitos fundamentais foram tratorados pela "tranquilidade". Como se um bairro inteiro fosse constituído de meliantes.

Isso quando o próprio bairro não foi removido em nome da especulação imobiliária, ops, das Olimpíadas.

O triste é que boa parte das classes média e alta não mexeu um músculo de preocupação por conta disso durante a farra dos grandes jogos. Pergunto-me qual seria o comportamento das mesmas pessoas caso os bairros nobres fossem ocupados e seus moradores vítimas de esculachos policiais na busca por corruptos e corruptores – que causam um impacto muito maior à sociedade do que um pequeno vendedor de drogas. O ato, certamente, causaria comoção.

O Estado fortemente armado agindo contra uma parcela da população em nome de outra tornou-se tão corriqueiro quanto o fechamento de uma pista da avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, aos domingos, para o lazer. Afinal, antes a pimenta nos olhos dos outros do que nos meus. Adotamos o pressuposto de que morros, comunidades pobres e favelas são um risco porque nelas estão alguns indivíduos ou organizações envolvidas em violência armada organizada. Dane-se a maioria pacífica. Agimos preventivamente para evitar o pior. O pior para nós que não somos dessa classe social.

Nós ajudamos a gestar essa política de segurança pública ao não exigir que o Estado garantisse qualidade de vida e cidadania através de serviços básicos como educação, saúde e lazer nesses locais. Ou mesmo uma perspectiva de futuro à juventude que, dessa forma, acaba empurrada para o tráfico. Ao invés de gastar em prevenção, gastamos em encarceramento.

Por essa lógica, então, também podemos considerar que prisões arbitrárias realizadas em bairros ricos de São Paulo, Rio, Salvador e Brasília, entre outros lugares, onde moram empresários, banqueiros e políticos que lucraram horrores com superfaturamentos e maracutais relativas à construção e realização dos jogos, poderia ser usada para estancar o desvio de bilhões dos cofres públicos. Pois dane-se a maioria honesta. Agiríamos preventivamente para evitar o pior. Dessa forma, a gente democratiza o absurdo.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negou, nesta terça (8), um habeas corpus para Rafael Braga. Preso durante as manifestações de junho de 2013 pela acusação de portar artefato explosivo (ele carregava água sanitária e Pinho Sol), foi condenado e depois liberado para cumprir prisão domiciliar. Mas foi preso novamente, acusado de envolvimento com o tráfico de drogas. Segundo a polícia, ele carregava 0,6 g de maconha e 9,3 de cocaína e um rojão – o que ele nega, afirmando que o flagrante foi forjado. Mesmo assim, com base na palavra dos policiais e sem outras evidências, foi condenado a 11 anos e três meses de prisão. Detalhe desnecessário: Rafael é jovem, negro e morador de uma comunidade pobre.

Agora, temos nova chegada de tropas ao Rio de Janeiro para ajudar a conter o surto de violência decorrente da crise econômica cuja responsabilidade é dos governos estadual e federal. Em última instância, militares são treinados para matar. E, até onde eu saiba, em uma democracia, eles não estão em guerra com seu próprio povo. Por isso, parte das próprias Forças Armadas não quer ocupar comunidades pobres, pois sabe que elas serão apontadas como responsáveis se houver problemas.

Em suma, o poder público utilizou os megaeventos para limpar o Rio das "classes indesejáveis". Triste é que parte da população e dos governantes apoia esse tipo de ação. Gosta de se enganar e acha que estará mais segura com o Estado agindo "em guerra" contra a violência – como se isso não fosse, em si, um contrassenso.

Isso é ótimo para desviar onde estão os verdadeiros problemas relacionados do Rio de Janeiro: não nos morros e periferias, mas dentro dos palácios.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.