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Leonardo Sakamoto

Contra a viralização da ignorância, temos que proteger o ensino de História

Leonardo Sakamoto

18/08/2017 09h34

Pichação em São Paulo. Foto Ernesto Rodrigues/AE

Um dos maiores saltos da humanidade foi o momento em que sua esmagadora maioria passou a aceitar que o planeta não é chato como uma pizza, mas redondo feito uma laranja. Não nego que, lendo os discursos que defendem uma Terra plana, torço para que seus apoiadores um dia encontrem a borda da tal pizza e lá tropecem, caindo no vazio no esquecimento.

Sempre me lembro disso quando vejo alguém torcer o nariz ao ouvir uma resposta mais longa diante de uma pergunta complexa. O insatisfeito, incrédulo, lança ao ar algo como: "Se gastou tudo isso de tempo para explicar, é porque deve ser mentira". Ou seja, só é verdade algo que pode ser detalhado em poucas palavras, utilizando apenas o conhecimento básico que todos detém sobre o mundo.

Não admira que Darwin enfrentou charges comparando-o a macacos em jornais e revistas. Qual teoria é mais simples de assimilar: que somos resultado de milhões de anos de seleção natural, em um processo lento e tortuoso, um processo mal-ajambrado de várias espécies que contaram com o meio ambiente e a sorte, ou que uma força divina criou tudo a partir de sua imagem e semelhança?

Não é só uma luta contra a tradição e os costumes. É uma luta inglória. O que é mais fácil e menos desesperador de entender? A evolução do universo conhecido, por mais de 13 bilhões de anos, do Big Bang ao surgimento do Homo Sapiens? Ou a criação de tudo em sete dias?

O mesmo tem acontecido com o ensino de História, tarefa difícil frente às campanhas para explicar o mundo de forma rasa. Porque a caminhada humana tem muitos poréns, contudos, entretantos, veja-bens. Não anda em linha reta, não tem bandidos e mocinhos bem definidos, tudo depende do ponto de vista. Às vezes, as explicações para alguns fatos levam páginas e mais páginas e, ainda assim, são incompletas. E como não são autoexplicativas, demandam treino do senso crítico e de capacidade de interpretar o mundo.

Mas ao ver qualidade do revisionismo histórico rastaquela utilizado como argumento em debates na internet percebemos que isso não é fruto apenas da formação distorcida. É sacanagem mesmo. De grupos que sabem que suas versões alternativas para a realidade não colam e apelam para inventar fatos a fim de cooptar muita gente para seu lado.

Pior ainda quando vemos Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, atuar em nome desse revisionismo, tentando defender racistas e neonazistas.

Diante do exército de zumbis que estamos criando, não me estranharia se, em breve, comecemos a queimar na fogueira os que defendem que a História seja contada em sua complexidade, levando em conta os pontos de vista dos vencedores e dos derrotados. Ou livros que complexificam a trajetória humana virem cinzas em fornalhas a céu aberto.

Antes, se alguém me mostrasse uma imagem de pessoas enlouquecidas em torno de montanhas de livros em chamas, eu me lembraria de "Fahrenheit 451", de François Truffaut (1966), baseado na obra de Ray Bradbury. No filme, livros são proibidos, sob o argumento de que tornam as pessoas infelizes e improdutivas. Quem lê é preso e "reeducado". Se uma casa tinha livros, "bombeiros" eram chamados para queimar tudo.

Hoje, se me mostrassem uma imagem assim, logo me perguntaria: onde desta vez? Algum grupo fundamentalista islâmico, cristão ou judeu? Racistas no interior dos Estados Unidos? Neonazistas europeus? África? Coreia do Norte? China? Malucos de São Paulo, Rio ou uma grande cidade brasileira?

Um casal de amigos conta que circulou na lista de WhatsApp de seus filhos mensagens sugerindo que jogassem fora os livros "comunistas" de seus pais. Relatos de pessoas que foram assediadas por carregarem livros de Marx e, principalmente, Gramsci não são raros na rede.

No dia 10 de maio de 1933, montanhas de livros foram criadas nas praças de diversas cidades da Alemanha. O regime nazista queria fazer uma limpeza da literatura e de todos os escritos que desviassem dos padrões que eles queriam impor. Centenas de milhares queimaram até as cinzas. Einstein, Mann, Freud, entre outros, foram perseguidos por ousarem pensar diferente da maioria. A Alemanha "purificou pelo fogo" as "ideias imundas deles", da mesma forma que, durante a Contra-Reforma, a Santa Inquisição purificou com fogo a carne, o sangue e os ossos daqueles que ousaram discordar.

A opinião pública e parte dos intelectuais alemães se acovardaram ou acharam pertinente o fogaréu nazista, levado a cabo por estudantes que apoiavam o regime. Hannah Arendt explica. Deu no que deu.

Hoje, vemos muitos se acovardarem diante de ondas intolerantes frente à diversidade humana, a universalização de direito e à própria história.

Colegas da imprensa me contaram histórias de membros de igrejas e templos do interior que pediram a seus fieis – após a polêmica envolvendo a divulgação do 3o Programa Nacional de Direitos Humanos – que destruíssem publicações que tratassem do tema. E políticos batem palmas para isso. Nesta quinta (17), o pastor Silas Malafaia afirmou em evento reunindo líderes evangélicos que quem apostar no "politicamente correto" [alcunha pejorativa dada aos direitos humanos] pode "seguir seu caminho" em 2018, longe do apoio deles. João Dória e Geraldo Alckmin, ao seu lado no evento, consentiram.

Passamos tanto tempo nos preocupando em garantir que os mais jovens decorassem datas de "descobrimentos" e locais de batalhas que não fomentamos o pensamento crítico. Muito menos mostrar a eles por que é tão fundamental aprender História.

E que História não se absorve através de apenas uma única fonte de informação, mas de várias, e que ela mesma vai ficando mais sólida à medida em que temos mais elementos para reafirmar ou contrapor as antigas certezas. E de preferência, fontes que tenham passado pelo crivo de discussões acadêmicas e sociais e não gestadas no banheiro de alguém.

Um amigo te disse que o Hocausto judeu na Segunda Grande Guerra nunca existiu? Isso é um erro grave, porque há milhões de corpos para mostrar o contrario. Mas se informe por outras fontes antes de tirar uma conclusão – livros, documentários, reportagens. E lembre-se que nem tudo é uma questão de opinião. Como não é opinião o fato de que negros e negras no Brasil e nos Estados Unidos ainda sofrem com a herança de um passado escravista não resolvido.

De acordo com o sociólogo Bernard Charlot, um saber só tem valor e sentido por conta da relação que ele produz com o mundo. Não é o livro que tem valor em si, mas o que a pessoa fará dele. Ou seja, muitos leem mal e porcamente um livro de História porque acham que não precisam dele para poder seguir sua vida.

Se o debate público fosse mais qualificado, a pessoa se sentiria motivada a ler determinados textos até para não ser humilhada coletivamente no Facebook ou no Twitter ao expor argumentos ruins, preconceituosos e superficiais. Como dizer que o nazismo é de esquerda por conta do nome do partido alemão (Hitler se revira no inferno quando alguém o chama de comunista); que a Terra é plana e é o centro do universo, apesar de séculos de provas científico e imagens; que a vacinação adoece crianças e serve apenas para a indústria farmacêutica ganhar dinheiro; que a ação humana não impacta o clima. Isso é um bom pacote de sandices, mas não resume toda a ignorância.

O que temos contudo, é que o discurso violento e simplificador – mais palatável e que mexe com nossos sentimentos mais primitivos e simples – ecoa e repercute. Esse discurso basta em si mesmo. Não precisa de nada mais do que si próprio para ser ouvido, entendido e absorvido. Vale ressaltar que esse discurso não é de hoje e nem monopólio desta porção tropical do mundo.

Em um debate qualificado quem usa esses argumentos toscos nem seria ouvido. Contudo, fazem sucesso na rede. Colam rápido, colam fácil. Pois, vale lembrar, quanto mais qualificado o debate em um universo que não sente a necessidade de um debate qualificado, menor a arena para consumi-lo.

Lembrando que "qualificação" não significa elitização, muito pelo contrário. Não é algo chato, hipercodificado, barroco ou acadêmico e sim que ajude o leitor a perceber a complexidade do mundo em que vive e o ajude a construir o seu sentido das coisas.

O problema é que não se qualifica o debate apenas através de ações individuais. Você precisa de uma ação em escala, o que teríamos – na minha opinião – através do Estado – que é o espaço que regula a concepção de educação e os parâmetros educacionais. Ou seja, precisamos repensar o ensino para melhorar o debate público.

Mais do que isso: precisamos proteger o ensino de História nas escolas contra a sanha estúpida de pessoas e movimentos que desejam que você saiba a data em que foi assinada a Lei Áurea, mas não um debate que esclareça porque o 13 de maio de 1888 não garantiu liberdade e autonomia aos negros e negras deste país. Ou que defendam que a criança aprenda que a Segunda Guerra Mundial começou quando a Alemanha invadiu a Polônia, mas reclama se professores discutem em sala sobre o que pregavam os capitalistas, socialistas e nazistas envolvidos no conflito. Não podemos deixar que uma Escola sem Cérebro viralize e emburreça nosso futuro.

Lembrar é fundamental para que não deixemos certas coisas acontecerem novamente.

Que a História do sofrimento humano, que moldou a forma como nos relacionamos com o mundo e com as outras pessoas hoje, seja conhecida e contada nas escolas até entrar nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada. Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.