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Leonardo Sakamoto

O Brasil vive a Era do Foda-se

Leonardo Sakamoto

24/08/2017 10h53

Foto: Marlene Bergamo/Folhapress

Vivemos a "Era do Foda-se". Sabe aquele esforço para se preocupar com as consequências das próprias ações e palavras e, no mínimo, manter as aparências? Então, ele se aposentou ou tirou férias, mandando avisar que só dá as caras quando a democracia plena voltar ao Brasil. Até lá, cada autoridade ou membro da elite deste país pode falar ou fazer o que quiser, sem medo da repercussão negativa junto à população. Até porque, convenhamos, foda-se.

Alguns dizem que isso vai gerar uma transparência sem igual na sociedade que nos levará a um patamar superior da existência no futuro e o melhor é tudo acontecer à luz do dia ao invés de se passar nos porões do Palácio do Jaburu. Há uma falsa dualidade nessa história, como se fossem possíveis apenas duas opções: pessoas que fazem coisas erradas e são sinceras e pessoas que fazem coisas erradas e mentem. Há a alternativa de fazer a coisa certa e ser sincero, mas – pelo visto – essa está no campo da ficção.

As estripulias de Gilmar Mendes são um dos capítulos mais evidentes do "foda-se" geral e irrestrito. O ministro do Supremo Tribunal Federal não tem pudor algum de aconselhar Michel Temer em uma noite e, logo depois, presidir a sessão no Tribunal Superior Eleitoral que salvou o poeta das mesóclises de ser guilhotinado. Também não vê conflito de interesses em mandar soltar, duas vezes em um prazo de 24 horas, um empresário acusado de corrupção de quem ele próprio foi padrinho de casamento de sua filha. Isso sem contar o Aécio.

Vendo as declarações dadas pelo tenente-coronel Ricardo Augusto de Mello Araújo, novo comandante da Rota, tropa da PM paulista, percebi que elas se encaixam nisso. Ele assumiu que não é possível abordar pessoas da periferia e em bairros nobres da mesma forma. "É uma outra realidade. São pessoas diferentes que transitam por lá. A forma dele abordar tem que ser diferente. Se ele [policial] for abordar uma pessoa [na periferia], da mesma forma que ele for abordar uma pessoa aqui nos Jardins, ele vai ter dificuldade. Ele não vai ser respeitado", explicou ao repórter Luís Adorno, do UOL.

"Da mesma forma, se eu coloco um [policial] da periferia para lidar, falar com a mesma forma, com a mesma linguagem que uma pessoa da periferia fala aqui no Jardins, ele pode estar sendo grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali, andando."

Pode ser chocante ver o comandante afirmar que o policial deve se adaptar ao lugar em que está, desconsiderando que a imensa maioria da população, seja em bairros pobres ou ricos, segue a lei e que todos deveriam ser tratados da mesma forma pelo Estado. Isso, porém, não é novidade para qualquer jovem negro e pobre da periferia que, não raro, é suspeito por ser negro e pobre. Seria melhor, contudo, ao assumir a situação, afirmar que vai lutar para mudá-la.

Mello Araújo pode ter a melhor das intenções e todos torcemos para que policiais honestos, que ganham pouco por uma profissão de risco, não se tornem estatísticas de morte do crime organizado. Mas essas declarações dadas sem nenhum porém ou entretanto são consequência de nosso tempo.

O Congresso Nacional é o maior exemplo da Era do Foda-se, com seu descolamento total e abissal com relação aos interesses do restante da sociedade. Boa parte dos que estão ali defendem o seu, o de seus ricos patrocinadores e o de seus grupos de interesse. E ponto. Aprovam propostas que seriam rejeitadas nas urnas e dobram a democracia para garantir sua perpetuação no poder. Vendem seus votos para o Palácio do Planalto com o objetivo de evitar que um presidente denunciado por corrupção seja processado. E legislam em causa própria, chegando ao cúmulo de tentar um autoperdão de suas dívidas bilionárias com o poder público.

A Era do Foda-se tem suas consequências, claro. Vendo autoridades darem de ombros, a população vai deixando de acreditar naquilo que nos mantém unidos como país. E passam a descumprir leis, regras e normas porque percebem que não valem muita coisa mesmo. E iniciado, o processo de derretimento das instituições e do respeito da população a elas não pode ser freado do dia para a noite.

A solução demanda nova pactuação política e social, aliada a muito suor em articulações para a construção de consensos. A dúvida que fica é se a reação em cadeia atualmente em curso inevitavelmente nos levará para o buraco. Leia-se por "buraco" a eleição, por vias democráticas, de uma figura antidemocrática em 2018 ou a busca por soluções autoritárias por parte de uma população cansada do clima de "vale tudo" e de "ninguém é de ninguém". Eu diria "Que Deus nos ajude". Mas Jeová deve estar ocupado com o povo de farda que invadiu sua casa sem mandado.

E, uma vez no buraco, cada um vai lutar por sua sobrevivência e a daqueles que veem como seus semelhantes. O bem do coletivo? Foda-se.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.