Cansado de piorar o presente, Temer ataca também as futuras gerações
Muita gente acordou para o fato do governo federal estar rifando o meio ambiente após Michel Temer ter extinto, por decreto, a Reserva Nacional de Cobre e seus Associados (Renca), entre o Pará e o Amapá, com área equivalente ao território do Estado do Espírito Santo, liberando-a para a exploração mineral.
Às vezes, é necessário uma onda forte que chega de repente para que a população perceba uma incômoda verdade: que a água já batia no pescoço e estamos quase nos afogando.
Nos últimos meses, o país tem vivido uma escalada sem precedentes de chacinas, massacres e emboscadas de trabalhadores rurais, quilombolas e populações indígenas. Lembrando que povos tradicionais garantem taxas de conservação ambiental de seus territórios muito superiores às médias dos parques nacionais nas mãos do poder público. E lembrando que tem sido em nome da extração ilegal de madeira que assentados são assassinados e trabalhadores escravizados.
Fazendeiros, madeireiros, grileiros, grandes empresas e afins sentem-se à vontade para fazer o que quiserem com a certeza de que nada ou muito pouco será feito contra eles. Até porque é o combinado. A bancada ruralista garante os votos para que um denunciado por corrupção e seu grupo continue na Presidência da República e, em troca, recebe perdões bilionários de dívidas previdenciárias, vistas grossas para a violência no campo e o desmantelamento da proteção ambiental – seja através do corte de unidades de conservação, via sucateamento dos órgãos responsáveis pela fiscalização ou mudança de legislação.
Em outras palavras, a manutenção de Michel Temer no poder está custando a dignidade desta e das futuras gerações.
"No Pará, quem vive do crime organizado e da pistolagem está tranquilo e seguro: pode matar que não vai acontecer nada. É uma situação para intervenção federal." O desabafo foi feito a este blog por uma liderança social da região Sudeste do Pará que pediu para não ser identificada, pois teme ser a próxima na fila.
Não é possível dizer que o Estado é "ausente" nessas regiões. As instituições que servem para garantir a efetividade dos direitos fundamentais são mal estruturadas, defeituosas ou insuficientes – muitas vezes, de propósito. Enquanto isso, aquelas criadas para garantir o desenvolvimento econômico, seja através do agronegócio, do extrativismo ou dos grandes projetos de engenharia, funcionam muito bem. Prova é que subsídios e isenções fiscais continuam beneficiando empresas no Pará, mas não há recursos para resgates de trabalhadores em situação análoga à de escravo.
Reportagem de Ricardo Senra, na BBC Brasil, mostrou que, em março deste ano, o ministro de Minas e Energia, Fernando Coelho Filho, anunciou a empresários canadenses que a Renca seria extinta e sua exploração leiloada entre empresas privadas em um evento em Toronto.
Isso se encaixa no padrão do governo Michel Temer que tem sido pedir a benção e prestar contas a empresários, ignorar o grosso da sociedade brasileira e mandar uma banana às populações e os grupos que serão diretamente impactados pelas mudanças propostas. Se foi assim com a Reforma Trabalhista, por que seria diferente com a proteção ambiental e de populações indígenas?
O mais irônico é que toda semana aparece alguém, seja político, militar ou empresário, reclamando de entidades não-governamentais que atuam na Amazônia, alertando para o risco delas tramarem a internacionalização da região. Claro que há muita ONG picareta cuja ação degrada as pessoas e o meio de lá, como aquelas que prometem levar a palavra do divino, mas transformam a vida de indígenas um inferno. Mas há também muita gente ajudando, gente que fez mais pela Amazônia do que uma renca de governos.
Os mesmos reclamantes não dão um pio sobre as dezenas de empresas estrangeiras que estão por lá, muitas delas degradando a gente e o meio. Nuvens de gafanhotos, comendo o que há pela frente, madeira, terra, água, minério, burlando leis ambientais e desobedecendo as trabalhistas. A verdade é que a Amazônia já foi internacionalizada há tempos e sua economia fortemente integrada ao resto do planeta através de redes de produção globais. A informação antecipada a investidores canadenses apenas é mais um capítulo dessa história.
Diante de acusações de aumento no desmatamento da Amazônia, o então governador do Estado do Mato Grosso Blairo Maggi (hoje, ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) fez chantagem, insinuando que o país teria que escolher entre seguir as regras ambientais, e passar fome, ou desmatar – e garantir soberania alimentar. Forma de maniqueísmo que não cabe em um estadista, mas interessa à parte dos empresários que lucra fácil com a expansão agropecuária e extrativista.
Que tal uma terceira alternativa? Uma que inclua um zoneamento econômico da região, dizendo o que pode e o que não pode ser produzido, uma regularização fundiária geral, confiscando as terras irregulares, a realização de uma reforma agrária e a garantia que os recursos emprestados pelos governos às pequenas propriedades – as verdadeiras responsáveis por garantir o alimento na mesa dos brasileiros – sejam, pelo menos, da mesma monta que os das grandes. Preservar os direitos das populações tradicionais, cujas áreas possuem as mais altas taxas de conservação do país. Manter o exército na caserna e longe da política – o que inclui a não-realização de exercícios militares com a presença de forças estrangeiras em território nacional, como está acontecendo no Amazonas agora. Respeitar as regras para os licenciamentos ambientais.
Por fim, vale sempre lembrar que parte dessa exploração nas florestas brasileiras atende, direta ou indiretamente, ao padrão de consumo do restante do país. Sim, nós comemos e bebemos a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal, arrotando alegria.
De onde você acha que vem o aço de nossos automóveis? E o couro dos estofados? E a madeira utilizada na construção de nossas casas e apartamentos? E a carne que comemos diariamente? E a soja que está em muitos de nossos produtos industrializados e na ração de outros animais?
Há um rosário de hidrelétricas de grande porte planejadas para serem construídas na Amazônia Legal, em rios como o Tapajós, o Tocantins e o Apiacás. Tendo em vista os graves impactos causados no meio ambiente, em trabalhadores rurais e em populações tradicionais em processos como os das hidrelétricas de Estreito, Jirau, Santo Antônio e Belo Monte, temos idéia do festival que isso vai causar quando a economia retomar seu crescimento.
Como sempre os grandes projetos de desenvolvimento da Amazônia vêm acompanhados de promessas de rios de leite e mel para a população local, mas na maioria das vezes os impactos negativos são maiores que os positivos. Bom mesmo é para a gente do Sul e Sudeste ou das grandes cidades que vai consumir grande parte dessa energia, exportada para os nossos ar condicionados, videogames e para a produção de nossas panelas de alumínio – com as quais muitos protestam contra o estado das coisas.
Isso não é um chamado à culpa, o que não leva a nada. Mas à responsabilidade, para lutar pela mudança de nossos padrões e o fim da relação de nossa relação de pilhagem entre a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal. É uma luta difícil, porque aprendemos a gostar do conforto das coisas. Mas necessária.
Queremos uma democracia não apenas para poder nos expressar e votar, mas para que aqueles que são vítimas de arbitrariedades e têm suas casas derrubadas em nome do progresso, desse que é "um país que vai pra frente", possam ter uma alternativa além do "ame-o ou deixe-o". Desse ponto de vista, como justificar diferenças entre o discurso de uma época em que abríamos grandes estradas para o momento em que construímos gigantescas hidrelétricas, xingando os opositores de "arautos do atraso" ou acusando-os de fazer o jogo do inimigo externo?
Não adianta protestar contra o governo nas redes sociais se não fazemos a nossa própria reflexão de como aceitamos bovinamente esses padrões de consumo que nos são impostos pela propaganda.
Muita coisa mudou desde que os verde-oliva deixaram o poder, naquela abertura "lenta, gradual e segura", mas mantivemos modelos de desenvolvimento que dariam orgulho aos maiores planejadores da ditadura: de que, para crescer rapidamente e atingir nosso ideal de nação, vale qualquer coisa. Passando por cima de qualquer um. Para atender à demanda. Demanda criada por empresas. Que nos transforma em escravos do desejo de consumir.
Pedro Casaldáliga, símbolo da luta pelos direitos humanos no Brasil, nos contou uma vez que ouviu uma justificativa da boca de um fazendeiro português com terras no Mato Grosso que serve feito uma luva para o que estou querendo dizer: "Dom Pedro, o senhor é europeu, o senhor sabe. As calçadas de Roma foram feitas por escravos. O progresso tem seu preço".
Preservar o meio ambiente e, portanto a qualidade de vida atual e das futuras gerações, passa por alterar o modelo desse pretenso "progresso". O que só acontecerá se repensarmos os padrões de consumo de nossa sociedade. Estamos dispostos a isso ou vamos continuar acreditando que o futuro dependerá apenas da remoção de figuras políticas execráveis que rifam o meio ambiente para se manter no poder?
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