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Leonardo Sakamoto

"Exaustivo", mas "com prazer": Gilmar Mendes brinca com o trabalho escravo

Leonardo Sakamoto

19/10/2017 13h59

Foto: Marlene Bergamo/Folhapress

O ministro Gilmar Mendes usou novamente da galhofa para tratar de um assunto nada divertido. Sobre a polêmica portaria do governo Michel Temer (que muda as regras para a fiscalização de escravidão, dificultando as libertações de trabalhadores), afirmou que ele próprio se submete a um "trabalho exaustivo", "mas com prazer".

"Eu, por exemplo, acho que me submeto a um trabalho exaustivo, mas com prazer. Eu não acho que faço trabalho escravo. Eu já brinquei até no plenário do Supremo que, dependendo do critério e do fiscal, talvez ali na garagem do Supremo ou na garagem do TSE, alguém pudesse identificar, 'Ah, condição de trabalho escravo!"', afirmou Gilmar Mendes segundo o jornal O Estado de S.Paulo.

Independentemente da opinião que se faça sobre o ministro, ele é um conhecedor das leis e da Constituição Federal e uma pessoa inteligente. Por isso, sabe que não poderia se colocar em "jornada exaustiva", um dos elementos que caracterizam trabalho análogo ao de escravo de acordo com o artigo 149 do Código Penal. Ele não está em situação de vulnerabilidade social e econômica para aceitar um serviço que pode colocar em risco sua saúde, segurança e vida, por exemplo.

Essa declaração, vinda de alguém que deveria defender as convenções internacionais que o Brasil assinou sobre o tema, beira, portanto, o desprezo. O tema deveria ser tratado com seriedade no Congresso Nacional e não se tornar piada nas mãos de juristas ou, pior, ser atropelado pelo governo federal. Como o país ficou sabendo, uma portaria publicada, nesta segunda (16), pelo Ministério do Trabalho, reduziu as situações que podem caracterizar esse crime.

A medida atende antiga demanda da bancada ruralista, base de apoio do governo Temer e peça fundamental na rejeição à segunda denúncia movida pela Procuradoria-Geral da República contra ele.

Hoje, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

A nova portaria estabelece o cerceamento de liberdade como condicionante para a caracterização de "condições degradantes" e de "jornada exaustiva", ao contrário do que está no artigo 149 do Código Penal. Segundo essa lei, qualquer um dos quatro elementos separadamente é suficiente para caracterizar a exploração. Dessa forma, as condições de trabalho a que estão submetidas as vítimas, por piores que sejam, passam a ser acessórias para determinar o que é trabalho análogo ao de escravo pelos auditores fiscais.

A procuradora-geral da República Raquel Dodge criticou a portaria em audiência com o ministro do Trabalho nesta quarta (18). Segundo ela, "ao adotar um conceito de trabalho escravo restrito à proteção da liberdade e não da dignidade humana, a portaria fere a Constituição". Ela pediu a revogação da nova medida.

Além disso, Gilmar Mendes vem do Mato Grosso, um dos estados com maior incidência desse crime, seja em criações de gado, derrubada de mata, produção de carvão para siderurgia, limpeza de área para o plantio de soja ou de algodão. De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra e do Ministério do Trabalho, foram 6070 pessoas resgatadas por lá entre 1995 e 2016 – o que coloca o Estado em segundo lugar no triste ranking de libertados no Brasil – apenas atrás do Pará. Portanto, ele sabe bem a realidade dos trabalhadores. Ou, ao menos, deveria saber.

"A jornada exaustiva não se confunde com a excessiva e muito menos com a realização de tarefas 'prazerosas', ainda mais quando realizadas no âmbito de uma das mais elevadas missões que podem ser confiadas a um cidadão nacional, a de ministro do Supremo Tribunal Federal", afirma Renato Bignami, doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade Complutense de Madrid, auditor fiscal do trabalho, que coordenou os esforços para resgate de trabalhadores escravizados em São Paulo.

"A jornada exaustiva combatida pelo ordenamento nacional é aquela que exaure física e/ou psicologicamente o trabalhador, implicando diversos males à sua segurança e saúde, reduzindo-o a uma mera mercadoria, o que é vedado expressamente em diversos dispositivos tanto do ordenamento nacional quanto dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil", explica.

De acordo com Tiago Cavalcanti, procurador do trabalho e coordenador nacional da área responsável pela repressão à escravidão do Ministério Público do Trabalho, "o ministro comete um erro jurídico elementar ao confundir jornada exaustiva com jornada prolongada. A exaustão não se limita à prestação de horas extras, mas à fadiga física e psíquica decorrente do ritmo, da frequência, da natureza da atividade. Nenhum ministro que anda de carro preto com motorista e ar condicionado está submetido a jornadas exaustivas".

Gilmar Mendes afirma que o combate ao trabalho escravo não pode ser nem partidarizado, nem ideologizado.

Nisso, concordamos perfeitamente.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.