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Leonardo Sakamoto

Maior legado de Temer, certeza da impunidade faz suas vítimas pelo país

Leonardo Sakamoto

28/10/2017 11h56

– Uma professora foi hostilizada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro após uma conferência sobre o centenário da Revolução Russa. Um jovem levantou-se e começou, aos gritos, a ofendê-la, dizendo que nunca houve ditadura no Brasil. Os pedidos dos demais presentes para que ele e seus colegas se acalmassem e dialogassem educadamente não surtiram efeito e a segurança foi chamada. O grupo dizia que estava filmando tudo e enviaria para o Exército.

– Garimpeiros incendiaram os escritórios do Ibama e do ICMBio em Humaitá, no Sul do Amazonas, em retaliação contra uma operação contra a extração ilegal de ouro no rio Madeira. Cerca de 500 pessoas participaram do ataque. Veículos recentemente adquiridos pelas instituições foram destruídos. Processos, arquivos e documentos viraram cinzas e os servidores tiveram que se refugiar em bases do Exército e da Marinha para não morrerem.

– Um terreiro em São João do Meriti, na Baixada Fluminense, teve que antecipar o horário de parte de suas celebrações, além de proibir frequentadores de usarem roupas típicas fora do local a fim de evitar violência. Religiões de matriz africana têm sido alvo de ataques frequentes por intolerantes religiosos cristãos. Em alguns casos, traficantes de drogas impõe uma espécie de decreto religioso na comunidade, proibindo a umbanda e o candomblé.

– Grupos ultraconservadores estão pressionando o Sesc Pompeia, em São Paulo, a cancelar seminário no qual está prevista a participação da filósofa norte-americana Judith Butler – referência mundial nas discussões sobre identidade e gênero. "Não podemos permitir que a promotora dessa ideologia nefasta promova em nosso país suas ideias absurdas", diz o texto de uma das petições. Promessas de ataques ao evento circulam livremente na rede.

– A exibição de um documentário sobre o ativista ultraconservador Olavo de Carvalho terminou em pancadaria e estudantes feridos na Universidade Federal de Pernambuco, em Recife. Grupos de esquerda e de direita acusaram-se mutuamente sobre quem teria começado a troca de insultos e agressões. Entre os contrários a Olavo de Carvalho, houve quem defendesse que o filme não deveria ser recebido na universidade.

– Após o governo federal dificultar a libertação de escravos em uma portaria, suspensa posteriormente pelo Supremo Tribunal Federal, empresários do setor de vestuário e do agronegócio vieram a público elogiar a medida do governo. O discurso corrente foi de que isso trouxe "segurança jurídica", colocou ordem e impediu que trabalhadores explorem seus patrões. Um deles já havia atacado uma procuradora do Trabalho e levado seus funcionários a protestarem contra o Ministério Público.

Foi uma semana difícil no Brasil.

E não apenas pelo fato da Câmara dos Deputados ter livrado Michel Temer de ser julgado por obstrução de Justiça e organização criminosa após ser bem recompensada por isso.

As mudanças sociais no sentido de garantir direitos a determinados grupos historicamente oprimidos levaram a contra-ataques ferozes daqueles que nunca tiveram que lutar para serem considerados cidadãos – ou mesmo gente. E para que essa reação a fim de manter tudo como está fosse palatável para o resto da sociedade, vendeu-se a ideia de que os carrascos são vítimas e as vítimas são carrascos. Intolerantes empoderados por essa narrativa (e com a certeza de que as instituições do Estado, fracas e corrompidas, não conseguem impor limites) agem como justiceiros. Assumem o papel de policial, juiz e executor em nome de sua própria crença.

A defesa da ideia de inversão de lugares entre vítimas e carrascos é feita diariamente por lideranças políticas, certos "humoristas", em escolas, empresas, clubes, igrejas.  Pois não basta trocar as bolas no dia a dia, precisamos normatizar a loucura. Enquanto isso, uma minoria de pessoas que não entende como funciona a vida em sociedade avança na implantação do medo como regulador das relações sociais.

A queda de Dilma Rousseff e a retirada de seu partido do poder levaram a determinados grupos e movimentos que construíram sua identidade no antipetismo a procurarem outro "inimigo" para poderem manter sua influência sobre uma parte do público que os segue desde o processo de impeachment. Ao que tudo indica, esse novo fator agregador tem sido a exploração do medo de uma parte da sociedade – o que pode se verificar pelas acusações infundadas de crimes sexuais envolvendo artistas nas últimas semanas. Esses grupos, ao contrário das massas que eles manipulam, são bem conscientes de tudo, ganhando dinheiro e poder com isso.

Com isso, estamos construindo uma espécie de "macarthismo tupiniquim", que não se restringe a acusar inimigos de comunistas, como ocorreu nos Estados Unidos da década de 50, mas atinge também crenças, identidade e sexualidade.

E diante da certeza de que as instituições do poder público não assumirão um papel de mediação possível uma vez que elas próprias são parte integrante do conflito, abre-se espaço para uma reação à reação. Que, não raro, adota métodos violentos como aqueles que afirma querer combater. E casos de batalha campal começam a surgir.

Ressalte-se que o cultivo do ódio e a dificuldade de diálogo não são novidade. Mas quando encontram o terreno fértil da percepção de falta de regras do jogo, o bom senso implode.

Que falta faz um espelho em casa. Com ele, seria possível fazer com que os que agem no sentido de dobrar os direitos dos outros à sua imagem e semelhança percebessem que os "monstros" que eles procuram são, na verdade, eles mesmos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.