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Leonardo Sakamoto

Pobres marchando em nome de um teto incomodam. E não é pelo trânsito

Leonardo Sakamoto

31/10/2017 20h10

Foto: Danilo Quadros

"Tá com dó? Leva para casa!"

A icônica frase, que funciona como um alerta do tipo "aqui vive alguém incapaz de sentir empatia", foi escrita e reescrita nas redes sociais ao longo desta terça (31) por conta da marcha do Movimentos dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST).

Cerca de 10 mil pessoas, segundo a organização, caminharam 23 quilômetros da ocupação Povo Sem Medo, em São Bernardo do Campo, até o Palácio dos Bandeirantes, no bairro do Morumbi, em São Paulo. Pedem a desapropriação de uma área de 70 mil metros quadrados, no município do ABC Paulista, que está sem utilização há quatro décadas. De acordo com o MTST, mais de 7 mil famílias ocupam a área.

Guilherme Boulos, coordenador nacional do MTST, culpa a situação do país pelo gigantismo do acampamento. "O agravamento da crise, o desemprego e a piora da situação social estão criando um verdadeiro barril de pólvora nas periferias urbanas", afirma. "As pessoas, quando ficam desempregadas, não conseguem mais pagar o aluguel. Há milhares, no Brasil todo, sem alternativas, sofrendo despejos individuais. Não resta outra alternativa a essas famílias do que se organizarem e ocuparem."

Representantes do movimento foram recebidos pelo governo Geraldo Alckmin no Palácio dos Bandeirantes. O Tribunal de Justiça havia confirmado a reintegração de posse, mas quer que isso seja feito de forma negociada. Afinal, o fantasma do Pinheirinho, comunidade em São José dos Campos (SP) removida à força pela polícia, que foi alvo de críticas internacionais, ainda ronda o governo estadual.

Voltemos à frase do início deste texto. Ela é proferida incansavelmente quando o tema é a dura barra enfrentada pela gente pobre que habita o Estado – locomotiva da nação, vitrine do país, orgulho bandeirante que não segue, mas é seguida e demais bobagens que floreiam discursos ufanistas caindo de velhos e dão enjôo. Pois é só falar da necessidade de políticas específicas para evitar que o direito à propriedade oprima os outros direitos fundamentais, que muita gente vociferando ódio sai babando, querendo morder.

São Paulo, bem como Rio de Janeiro e Brasília, entre outras, é uma cidade em que o metro quadrado disparou nos últimos anos, resultando em um processo de gentrificação que empurra as classes baixa e média ainda mais para a periferia, onde a estrutura é mais precária. Ou seja, os que mais necessitam de serviços e equipamentos públicos (ao contrário dos ricos, que podem pagar por eles) são aqueles que continuam tendo seu acesso negado.

De todas as ideias sem sentido, uma das piores é o pensamento do "se me estrepei a vida inteira, todo mundo tem que se estrepar também". Ele representa o melhor da filosofia "Para o Buraco, Eu Não Vou Sozinho", muito conhecida desde que o primeiro hominídeo andou de pé, tropeçou e, para não cair sozinho de bunda no chão, arrastou o companheiro junto. Filosofia que, a cada dia, vai se aprofundando em sociedades desiguais, consumistas e individualistas como a nossa.

"Trabalhei a vida inteira e nunca tive uma casa própria. Agora, vem um bando de desocupado e invade um terreno para chamar de seu? A polícia tem que descer o cacete nesse povo para aprender que patrimônio só surge do suor e do trabalho." Nem os próprios donos de terrenos improdutivos seriam tão virulentos assim. Nada como uma sociedade doutrinada.

Já eu prefiro esta versão mais sincera: "Se não tenho coragem de lutar pelo que acredito ser uma vida digna, permanecendo na ignorância (que é um lugar quentinho) e preferindo ruminar entre os dentes a minha infelicidade, quero que o mundo faça o mesmo".

Sofrer não é o único caminho para a salvação e até me mostrarem que há algo depois que o coração para de bater, não estamos penando neste mundo para acumular bônus a fim gastá-los na Disneylândia do Paraíso. Quem pensa assim, não entende, nem desenhando, que moradia, alimentação, educação, saúde são direitos fundamentais. E, nessa hora, brada: "E esses vagabundos pagam impostos como eu para poderem ter direito a direitos fundamentais?"

Esses mesmos repetem bobagens como "a pessoa é pobre porque não estudou ou trabalhou". Pois acham que basta trabalhar para ter uma boa vida e que um emprego decente e acreditam que uma educação de qualidade, com potencial transformador, é alcançável a todos e todas desde o berço. E que todas as pessoas ricas e de posses conquistaram o que têm de forma honesta. Acham que todas as leis foram criadas para garantir Justiça e que só temos um problema de aplicação. Não se perguntam quem fez as leis, o porquê de terem sido feitas ou questiona quem as aplica. E quem faz de tudo para manter tudo como está.

Quando vejo milhares de pessoas ocuparem um terreno ocioso, não consigo deixar de ficar feliz porque aquela terra, finalmente, poderá ter uma função social. Com exceção do dono do terreno, de outros donos de terrenos ociosos e de seus representantes políticos, legais e econômicos, ou das pessoas que são pagas por esse pessoal para defender seus interesses, é difícil entender a razão de ter gente que sai atacando uma marcha de sem-teto como essa, fazendo o papel de soldado não-remunerado.

"Por que se acham melhores do que eu?", tive que ouvir de uma mulher tempos atrás contrária a uma ocupação. Não é uma questão de melhor ou pior. E sim de aceitar um destino horrível em uma sociedade que, apenas teoricamente, não é de castas. Ou lutar para sair dessa condição.

Existe uma diferença clara entre um terreno em que se semeia vento e se ergue ervas daninhas e um terreno onde se produz e onde constrói vidas. O primeiro não deve e não pode existir em uma sociedade em que muitos passam fome e vivem ao relento.

Valores passados cuidadosamente e ao longo do tempo vão colando em nossos ossos e nos transformando em guerreiros da causa alheia. Não ganhamos nada com isso, pelo contrário, perdemos. Como cidadãos, como seres humanos. Mas preferimos defender o não-uso de uma propriedade privada do que a dignidade do ser humano. Tudo em nome de uma concepção equivocada de Justiça.

A polícia e os políticos não são os únicos responsáveis por manter a ordem do povo. O povo, devidamente treinado por instituições como escolas, igrejas, trabalho e a própria mídia garante o seu próprio controle e o monitoramento no dia a dia. Quem sai da linha do que é visto como o padrão e o normal, leva na cabeça. Quem resolve se insurgir contra injustiças e foge do comportamento aceitável vira um pária.

Como já disse aqui, você acha que apenas doar agasalhos e cobertores resolve o problema de quem está passando frio do lado de fora? E que a vida vai mudar com a somatória de pequenas ações de caridade coloridas e cintilantes? Você é do tipo que pede mais educação, mais saúde, mais segurança e, ao mesmo tempo, quer menos impostos e menos Estado?

"Tá com dó? Leva para casa!" Não é uma responsabilidade individual minha ou sua tomar cada pessoa em situação de rua ou sem-teto pelo braço e levá-los para casa. Mas a construção participativa de saídas é um dever coletivo que tem no Estado o ator principal.

"Por que essa gente não pode sofrer quieta?", li nas redes sociais. Porque decidiram que a sua vida teria um rumo diferente daquele que programaram para elas.

Em uma sociedade em que a cidadania pertence aos automóveis e não às pessoas, qualquer congestionamento criado por uma marcha de desvalidos é, não raro, tratada com raiva e desdém.

Nesse contexto, parar o trânsito, avenidas, a cidade, o país em nome do que realmente vale a pena não é apenas uma questão de luta por direitos. É a reafirmação necessária de que a vida humana importa, apesar de – diariamente – o mundo tentar nos convencer do contrário.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.