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Leonardo Sakamoto

Temer atende a desejo da Bancada da Bala e quer limitar Lei de Migração

Leonardo Sakamoto

21/11/2017 10h51

Haitianos e Senegaleses chegam à cidade de Brasiléia, no Acre. Foto: Cléber Júnior/Agência O Globo

Nem bem a Lei de Migração passou a valer, nesta terça (21), e o governo Michel Temer pretende reduzir as conquistas sociais e humanitárias trazidas pelo novo texto através de um decreto de regulamentação.

A ação do governo, que contraria o seu próprio chanceler, o senador licenciado Aloysio Nunes (PSDB-SP), autor da nova lei em 2013, atende a desejos da Bancada da Bala, que reúne deputados ligados a uma visão ultraconservadora de segurança pública. A dignidade humana pode ter entrando como parte do pagamento por votos que livraram o pescoço de Michel Temer na votação da denúncia encaminhada pela Procuradoria-Geral da República por organização criminosa e obstrução de Justiça e também como aceno em nome da aprovação da Reforma da Previdência.

Quando sancionou a nova Lei de Migrações este ano, Michel Temer já havia vetado 20 pontos, atendendo a pressões do Ministério da Defesa, da Polícia Federal e do Gabinete de Segurança Institucional. Mesmo assim, a essência da legislação havia sido mantida. Ou seja, o Brasil passaria a ver a questão não sob a ótica da ditadura militar, quando o antigo Estatuto do Estrangeiro foi criado, mas sob o ponto de vista da democracia e do respeito à dignidade ao ser humano.

"A estrutura da proposição parte da consagração do migrante como sujeito de direitos e de garantias, a considerar a mobilidade humana como um todo, o que significa contemplar o imigrante, o emigrante e o visitante", afirmou o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que foi relator da lei, na época de sua aprovação. A lei descriminaliza a condição de migrante sem documentos, desburocratiza o processo migratório, regulamenta a concessão de vistos humanitários o e estabelece direitos e deveres dos migrantes no Brasil.

Grupos de extrema direita realizaram microprotestos em cidades como São Paulo pouco antes da sanção, usando argumentos que reduzem imigrantes pobres a ladrões e traficantes. Diziam que o país se transformaria no caos com a mudança da lei, seguindo o que há de pior no nacionalismo ultraconservador que tenta fazer com que a Europa e os Estados Unidos se tornem uma sucursal do inferno.

Matéria de Patrícia Campos Mello, na Folha de S.Paulo, lista problemas do novo decreto. Por exemplo, a necessidade de que todos os familiares de quem solicita asilo político estejam no território brasileiro no momento do pedido – o que não faz sentido porque, normalmente, um asilado foge sozinho de seu pais. Ou o estabelecimento de cobrança de taxas para emissão de identidade de imigrante, sendo que os refugiados chegam sem dinheiro algum e a necessidade de apresentação de um documento em bom estado para a entrada no país, ignorando a realidade de que muitos que fugiram de seu país trazem apenas a roupa do corpo. E, o pior, prevê prisão por motivos migratórios, o que vai contra a nova lei.

A Defensoria Pública da União, organizações da sociedade civil, entre outras instituições, tentam reverter os retrocessos do decreto.

Em todo o mundo, culpamos os migrantes por roubar empregos, trazer violência, sobrecarregar os serviços públicos porque é mais fácil jogar a responsabilidade em quem não tem voz (apesar de darem braços para gerarem riqueza para o lugar em que vivem) do que criar mecanismos para trazê-los para o lado de dentro do muro que os separa da dignidade – que, inclusive, gera recursos através de impostos.

Grande parte desses migrantes faz o trabalho sujo que poucos querem fazer, limpam latrinas, costuram roupas, recolhem o lixo, extraem carvão, abatem gado, constroem casas. Até porque os países que recebem esses trabalhadores ganham com sua situação de subemprego e o não pagamento de todos os direitos. Não se enganem: a porosidade de fronteiras ajuda na regulação do custo da mão de obra global.

Em São Paulo, o preconceito tem perdido a vergonha e brotado do esgoto. Ataques violentos a bolivianos e haitianos foram registrados. Pedidos de devolução de refugiados sírios são lidos nas redes sociais.

O problema não é com os migrantes em geral, mas especificamente com os migrantes pobres. A professora catedrática de Ética e Filosofia Política na Universidade de Valência, Adela Cortina, afirma o problema não é exatamente a xenofobia, porque ricos empresários e turistas estrangeiros costumam ser bem recebidos em todo o mundo. Mas a "aporofobia", o rechaço aos pobres, que aparecem na forma de refugiados econômicos, sociais e ambientas e de migrantes em geral.

A verdade é que se centenas de milhares de bolivianos, paraguaios, haitianos, senegaleses, chineses fossem às ruas, bloquear São Paulo, pedindo para que fossem respeitados como os estrangeiros ricos que vêm trabalhar na cidade, seriam duramente reprimidos. Deportados até. E muitos dos autointitulados "cidadãos de bem", que consideram terrível o tratamento que os EUA dispendem aos seus migrantes, com deportações e muros, ficariam incomodados com os protestos de nossos migrantes. "O que eles querem mais? Acham que são iguais a gente? Calem a boca e continuem costurando!" Como sempre foi.

A mobilidade deveria ser livre em todo o planeta. Afinal, se o capital não vê fronteiras, os trabalhadores também deveriam não ser barrados nelas. Ou morrerem afogados ou à bala enquanto tentam ultrapassa-las. Adoraria que o Brasil desse um exemplo aos países do Norte, derrubando os muros que criam cidadãos de primeira e segunda classe, possibilitando o livre trânsito de trabalhadores sem condicionantes. Mas ao tentar reduzir o impactos positivos trazidos pela nova Lei de Migração, mostra que soube fazer direitinho a lição de casa dos países mais ricos.

Por fim, logo após a fundação da vila de São Paulo, José de Anchieta, com a ajuda de índios catequizados, ergueu um muro de taipa e estacas para ajudar a mantê-la "segura de todo o embate", como descreveu o próprio jesuíta. Sim, São Paulo já foi uma cidade fisicamente murada. Os indesejados eram índios carijós e tupis, entre outros, que não haviam se convertido à fé cristã e, por diversas vezes, tentaram tomar o arraial. Tecnicamente, porém, os invasores eram os brancos portugueses.

Mas a história é contada sempre pelo lado do vencedor. Que faz as leis e as muda como e quando quiser. Exatamente para se manter do lado vencedor.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.