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Leonardo Sakamoto

"Do PT, você não fala": Como obsessões repetitivas corroem o debate público

Leonardo Sakamoto

17/01/2018 13h53

Um dos fenômenos mais interessantes das redes sociais é a incapacidade de algumas pessoas de travarem um debate sobre qualquer assunto sem transformá-lo em um canal para dar vazão às suas taras e obsessões.

Aquele seu amigo ou amiga que usa qualquer discussão, não importando sobre o que seja o tema, para falar mal do PT ou do PSDB, é um dos casos mais conhecidos dessa patologia.

Por exemplo, alguém posta no grupo de WhatsApp uma notícia sobre corrupção envolvendo membros do (P)MDB em uma instituição financeira – o que não é algo necessariamente novo, para ser honesto. Ato reflexo, o amigo comenta algo como "da época do PT, você não fala, né?".

Houve corrupção na gestão petista? Claro que sim. E possível discuti-lo? Não só possível como necessário. Mas sinto informar que o PT não é o foco de todos os assuntos, pelo menos de uma pessoa saudável. Como resultado, problemas do país são sempre reduzidos, de forma infantil, à consequência da atuação de um único partido, quando a tragédia é grande o suficiente para ser multifatorial. Isso gera um debate inútil que releva a denúncia, fazendo com que o problema continue a existir.

Mas isso também ocorre quando alguém posta o link de uma reportagem bem fundamentada sobre os impactos negativos da decisões tomadas na economia ou na seguridade social por Dilma Rousseff, por exemplo.

De bate e pronto surge algum semovente que comenta que "o FHC fez coisa muito pior com o país e você não se indignou". Nem bem a gente começa a refletir sobre o que uma coisa tem a ver com a outra e aparece outro gritando – com um texto todo em maiúsculas – que "você faz o jogo da direita, ainda mais num momento em que Temer destrói a economia e Lula está sendo julgado".

Em ambos os casos, usa-se a argumentação do "antes você não falava nada", que é pífia. Primeiro, porque ela se vale do fato de que pessoas que têm mais o que fazer não vão gastar tempo reunindo o que postaram no passado para contradizer um maníaco virtual. Segundo, porque o fato de alguém não comentar sobre um problema no passado não significa que não possa fazer isso hoje. Aliás, que bom que a pessoa acordou para acompanhar a política. O processo de menosprezar o conteúdo taxando-o de incoerente sem tentar entender o que ele significa não deixa de ser um argumentum ad hominem, à pessoa, ao invés de uma discussão sobre a informação.

Toda vez que critico o que o atual governo vem fazendo com os direitos socioambientais, leio que, na época do PT, eu não falava nada. Não importa que publiquei mais de 100 textos tratando da grande sacanagem socioambiental chamada Belo Monte ou que realizei investigações de cadeias produtivas envolvendo o trabalho escravo em várias obras do PAC, entre tantas outras coisas.

Ou seja, contra convicções de pessoas com taras e obsessões, não há fatos que resistam.

Muitos tendem a concordar com conteúdo que reforce sua visão de mundo. E as redes sociais são pródigas em ampliar as câmaras de eco, fazendo com que escutemos dos outros o que nós mesmos poderíamos ter dito. Conteúdo vindo de "fora", com informação coletada sob outro prisma e opinião produzida em outras bases, fazem com que nos sintamos atacados ou fragilizados. O medo do desconhecido e o pavor de que ele mude quem somos ou aquilo que pensamos ser pode gerar reações violentas. Cria-se instrumentos para responder a essas ameaças externas. E esses instrumentos são exaustivamente repetidos para repelir o debate, ao invés de enfrenta-lo.

Não estou propondo que as pessoas não tenham suas convicções, muitos menos que não se expressem da forma como desejarem – desde que, é claro, não incitem violência a terceiros, especialmente a grupos historicamente mais vulneráveis e alijados de seus direitos.

Mas imagine que bom seria um mundo em que as pessoas buscassem entender os problemas e discutissem soluções para cada um deles, sem reagir de forma padrão a todos, sempre na defensiva. Até porque o mundo tem muitos problemas, com muitas origens diferentes. Não é simplificando e pasteurizando a resposta a eles que construiremos algo melhor.

Caso contrário, quando arqueólogos alienígenas vierem estudar os escombros de nossa civilização num (não tão distante) futuro, imagino que ficarão impressionados. Afinal, uma raça tão promissora, em determinado momento, parou de pensar e refletir e involuiu até se transformar em grandes papagaios monotemáticos.

Em tempo: Incorre na mesma tara quem argumenta "seu isentão de merda!" diante de textos que fazem ponderações sem se dignar a interpretá-los.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.