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Leonardo Sakamoto

Não confunda artigo e editorial, análise e notícia falsa, picanha e chuleta

Leonardo Sakamoto

25/01/2018 15h24

Viralizou pelas redes sociais um artigo crítico ao julgamento de Lula, publicado pelo economista Mark Weisbrot, na última terça (23). Muitos nas redes sociais o compartilharam, afirmando que o New York Times, que veiculou o texto, estava defendendo o ex-presidente. O que não era o caso.

Um artigo de opinião traz o posicionamento do autor. Se desejarmos ver o ponto de vista de um jornal, precisamos ler o editorial. Parte dessa confusão vem de pessoas que, por ingenuidade e falta de informação, passam por cima da diferença.

Mas também há casos de má fé. Porque os que sabem que um artigo não é um editorial podem estar se valendo do desconhecimento público para afirmar que um dos mais influentes jornais do mundo defendeu Lula, transformando o texto específico em munição na batalha que travam nas redes. Isso reforça que a guerra na internet não conta apenas com a distorção de fatos. Às vezes, é a manipulação do contexto que gera a desinformação.

Porém, alguns veículos pode ser corresponsáveis por situações assim por não garantirem um mínimo de pluralidade, levando o consumidor de informação a achar que, para fazer parte do rol de articulistas e colunistas, é preciso estar alinhado ao seu posicionamento. Não é o caso do Times, contudo.

Se tivéssemos uma educação para a mídia como parâmetro curricular obrigatório nos ensinos fundamental, médio e até superior, reduziríamos esse tipo de confusão voluntária ou involuntária. Infelizmente, estamos longe disso. Algo fácil que a mídia pode fazer é, sempre que possível, ajudar o leitor diferenciando os gêneros jornalísticos. Muitos veículos costumam identificar o que é notícia, artigo, editorial, análise, enfim, próximo ao título. Outros deixam claro que blogs e colunas podem trazer, sistematicamente, textos opinativos e analíticos.

Outro caso que chamou a atenção veio do debate sobre a Reforma da Previdência. Análises e opiniões críticas à proposta do governo federal têm sido tachadas de "notícias falsas" nas redes sociais. Quase sempre os acusadores são perfis falsos, mas também há pessoas e páginas reais. Os alvos têm sido postagens de jornalistas e economistas.

O problema é que o conteúdo chamado de mentiroso não traz informações equivocadas e incorretas, mas interpretações que apontavam para uma direção diferente daquelas dos defensores da reforma. O que incluiu a questão do tamanho do déficit da Previdência, por exemplo, bem como pontos específicos, como os impactos a trabalhadores da classe média baixa e aos trabalhadores da economia familiar rural.

Muitos não conseguem entender que análises divergentes sobre um mesmo fato podem coexistir. E, consequentemente, discutem um texto analítico como se fosse um texto informativo tentando desinformar.

Há um problema anterior às "notícias falsas" do qual poucas pessoas falam, mas que é tão assustador quanto: parte das pessoas acham que texto é tudo igual. Daí, ao se depararem com um editorial, um artigo de opinião ou mesmo uma análise que dão interpretações diferentes àquelas às quais estão acostumadas, vão logo gritando que se trata de fake news. Quando, na verdade, não são nem notícia.

Pode parecer pouca coisa. Mas isso pavimenta a estrada em direção a um futuro com cara daqueles episódios sombrios de Black Mirror que a gente não gosta de ver sozinho.

Texto é como carne. Se você é carnívoro e não chama picanha de fraldinha e costela de bife de fígado, por que acha que os diferentes textos jornalísticos têm o mesmo formato e gosto?

Como explica o professor Manuel Carlos Chaparro, da Universidade de São Paulo, um dos grandes especialistas em conceitos e gêneros, o jornalismo se organiza em dois grandes formatos: o da narração (usado para relatar fatos e falas) e o da argumentação (para lidar com as ideias).

A diferença entre ambos não é que um tem informação e o outro, opinião. Todo texto noticioso tem sua carga de opinião. Afinal, a escolha das fontes, o recorte temporal ou espacial da apuração, entre outros, são resultado do ponto de vista do repórter, de seus chefes e do próprio veículo. Da mesma forma, textos opinativos também trazem conteúdo factual, com informações sobre o tema do qual tratam.

A questão que diferencia ambos é a estrutura utilizada. E temos várias, como a entrevista, a notícia, a reportagem, o artigo de opinião, o editorial, cada qual misturando uma dose diferente de informação e opinião. Para um leigo, pode ser difícil apontar qual é qual. Mas com treinamento, seja na escola, seja no dia a dia da interação midiática, aprende-se facilmente a distingui-los.

Por que todo esse trololó é importante? O debate público poderia ser mais bem resolvido se as pessoas, ao lerem um texto, prestassem atenção em quem escreve, pessoa ou organização. E se preocupassem em entender que noticiar algo é diferente de opinar e analisar sobre o significado desse algo novo. E quando um autor traz elementos para opinar ou analisar não significa que defende que seu posicionamento é a verdade (até porque isso não existe), mas a interpretação de fatos que ele achou mais cabível.

Este post, portanto, não é sobre os interesses de quem chama de "falso" tudo o que é divergente de sua ideologia ou que distorce conteúdos na internet. Até porque essa situação se repete em todo o espectro político, da direita à esquerda, passando pelo centro e envolve uma série de fatores, como a questão do viés de confirmação (tendemos a chamar de verdade tudo com o qual concordamos e de mentira, tudo o que discordamos), as bolhas produzidas pelos algoritmos nas redes sociais (que nos isolam e dificultam o respeito à diferença), entre outros. Mas sim sobre texto.

Porque, como sempre digo, falta amor no mundo, mas falta também interpretação de texto.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.