Topo

Leonardo Sakamoto

Ministro da Justiça trata moradores de favelas como combatentes inimigos

Leonardo Sakamoto

21/02/2018 12h06

Soldado durante operação na comunidade da Rocinha em 2017: Foto: Leo Correa/AP

O ministro da Justiça, Torquato Jardim, em entrevista ao jornal Correio Braziliense sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro, produziu uma belo texto para ser recitado no dia do velório da democracia.

Sobre a demanda das Forças Armadas por mais "segurança jurídica" para a missão eleitoral a elas conferida por Michel Temer (aumentar sua popularidade e desviar a atenção da incompetência sistêmica do governo), afirmou:

"Se está lá com PM, Polícia Civil e Forças Armadas, se passar um guri de 15 anos de idade, você vê a foto dele, já matou quatro, entrou e saiu do centro de recuperação, uma dúzia de vezes, e está ali com um fuzil exclusivo das Forças Armadas, você vai fazer o quê? Prende. O guri vai lá e sai, na quarta ou quinta vez que você vê o fulano, vai fazer o quê? Você tem uma reação humana aí que deve ser muito bem trabalhada psicologicamente, emocionalmente, no PM ou no soldado. Você está no posto, mirando a distância, na alça da mira aquele guri que já saiu quatro, cinco vezes, está com a arma e já matou uns quatro. E agora? Tem que esperar ele pegar a arma para prender em flagrante ou elimino a distância? Ele é um cidadão sob suspeita porque não está praticando o ato naquele momento ou é um combatente inimigo?"

E tem mais:

"Como você vai prevenir aquela multidão entrando e saindo de todas as 700 favelas? Tem 1,1 milhão de cariocas morando em zonas de favelas, de perigo. Desse 1,1 milhão, como saber quem é do seu time e quem é contra? Não sabe. Você vê uma criança bonitinha, de 12 anos de idade, entrando em uma escola pública, não sabe o que ela vai fazer depois da escola."

Essas declarações já seriam problemáticas na boca de um serial killer. Mas Torquato é ministro da Justiça. Isso, Jus-ti-ça. Ao que ele credita o fato do garoto em questão ter entrado no crime e permanecido no crime? Maldade satânica? Genes ruins?

O Estado brasileiro, do qual, neste momento, ele é representante, tem sido incapaz de garantir perspectivas de vida aos jovens. Não abre portas para empregos, como aprendiz, a quem entra na idade economicamente ativa. E nega educação básica e profissionalizante decentes. Mais do que isso, o Estado, na maioria das vezes que aparece no morro ou na periferia, vem para tirar, não entregar. Tira dignidade, tira a vida.

E a cada vez que ele é flagrado cometendo crimes, ao invés de ser incluído em um programa real de (re)inclusão social e econômica, durante uma internação com respeito e dignidade, é lançado para um depósito de gente, com dor, tortura e abandono, em que aprende técnicas e métodos violentos e entende que a sociedade prefere vê-los mortos. Então, por que deveriam seguir as regras criadas por quem não os quer?

É claro que não há ordens diretas para metralhar os jovens negros e pobres dadas pelo comando do poder público. Mas nem precisaria. As forças policiais em grandes metrópoles, como o Rio ou São Paulo, são treinadas para, primeiro, garantir a qualidade de vida e o patrimônio de quem vive na parte "cartão postal" das cidades e reprimir a periferia. Já, a maior parte das Forças Armadas, que vem comandar a segurança pública do Rio, são treinadas para matar mesmo.

Mais do que uma escolha pelo crime, o tráfico é visto como uma escolha pelo emprego e pelo reconhecimento social para muitos jovens. Um trabalho ilegal e de extremo risco, mas em que o dinheiro entra de forma rápida. Dessa forma, pode ajudar a família, melhorar de vida, dar vazão às suas aspirações de consumo – pois não são apenas os jovens de classe média e alta que querem o tênis novo que saiu na TV. Ganhar respeito de um grupo, se impor contra a violência da polícia. E uma vez dentro desse sistema, terá que agir sob suas normas. Matando e morrendo, em uma batalha em que, para cada baixa, fica uma família.

A criminalidade ocupa o vácuo deixado pelo Estado na vida de crianças e adolescentes, simples assim. O governo, do qual Torquato faz parte, deveria estar disputando o futuro desses jovens com a criminalidade. Mas, da forma como age com eles e pela maneira como os vê, empurra-os para o colo do crime diariamente.

"Você vê uma criança bonitinha, de 12 anos de idade, entrando em uma escola pública, não sabe o que ela vai fazer depois da escola." Não sabe, mas deveria saber. Não sabe porque não efetiva políticas para garantir que essas crianças tenham atividades de educação, lazer, esporte e cultura no contraturno. Pois, se assim fosse, o tráfico não teria o que contigente que tem à sua disposição

Esse tipo de declaração alimenta a sanha dos cães de guerra nas redes sociais, que têm orgasmos múltiplos quando veem corpos de jovens ligados ao tráfico ou não sangrando, aqui e ali. Ou que amam qualquer tipo de execução sumária de jovens pobres, sejam as feitas legalmente e "informalmente" pela mão do próprio do próprio Estado (nas incursões nos morros e periferias, que também acabam por matar inocentes), sejam as feitas pelas mãos da população (ao linchar suspeitos de crimes por turbas enfurecidas e idiotizadas).

Como já disse aqui várias vezes, já faz tempo que o Rio optou pelo caminho mais fácil do terrorismo de Estado ao invés de buscar mudanças estruturais – como garantir qualidade de vida à população e perspectivas aos mais jovens, para além de despejar bala dia e noite.

Foi assim para viabilizar os Jogos Panamericanos, a Copa do Mundo e as Olimpíadas. A crise de governabilidade pela qual passa o Estado, aliada à crise econômica, apenas aprofundou esse quadro.

Policiais e militares não são monstros alterados por radiação para serem insensíveis ao ser humano. Não é da natureza da maioria das pessoas que decide vestir farda (por opção ou falta dela) tornar-se violenta. Elas aprendem a agir assim. No cotidiano da instituição a que pertencem (e sua natureza mal resolvida), na formação profissional que tiveram, na exploração diária como trabalhadores fodidos e mal-remunerados (pelo menos, a banda honesta) e na internalização de sua principal missão: manter a ordem (e o status quo) a qualquer preço. Esse problema não se resolve apenas com aulas de direitos humanos e sim com uma revisão sobre a função da segurança pública em uma sociedade.

A esta altura, devo estar sendo xingado por muito gente que está em pé, abraçado com uma bandeira nacional, gritando "bandido bom é bandido morto". Mas não estou defendendo o tráfico, muito menos traficantes. O que está em jogo aqui é que tipo de Estado e de sociedade que estamos nos tornando ao tratarmos a situação sob a ótica de Torquato Jardim. Do que estamos abrindo mão com isso?

"Não há guerra que não seja letal", afirmou o ministro na entrevista.

Concordo, legal. E o respeito à vida e o bom senso parecem ter sido suas primeira vítimas no Rio. Até porque, se estivéssemos em guerra, haveria regras internacionais a seguir, como a Convenção de Genebra, para preservar a integridade dos civis e evitar tortura e morte desnecessária de inimigos.

De vez em quando não sei de quem tenho mais medo: dos bandidos, dos "mocinhos" ou de nós mesmos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.