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Leonardo Sakamoto

Intervenção no Rio: Qual o limite do povo antes da desobediência civil?

Leonardo Sakamoto

25/02/2018 15h16

Militares inspecionam mochilas de alunos em comunidade na Zona Norte do Rio de Janeiro. Foto: Leo Correa/AP

Crianças obrigadas a abrir suas mochilas escolares para serem revistadas por militares. Moradores sendo fotografados e "fichados" para poderem sair da comunidade em que vivem. As cenas do Rio de Janeiro sob intervenção federal na área de segurança pública, tendo as Forças Armadas à frente, são apenas o mais novo capítulo de uma longa história de desrespeito aos direitos dos mais pobres.

O Rio foi acostumado a conviver com a injustiça, a ponto dela se tornar parte da paisagem, como o Pão de Açúcar e o Morro do Corcovado. A cidade que foi a maior porta de entrada de africanos traficados para serem escravos no país (cerca de 2 milhões de vítimas) segue se comportando como se a classe trabalhadora ainda vivesse em cativeiro.

Talvez por isso continue escolhendo capatazes entre os próprios trabalhadores. Policiais e militares pertencem à mesma classe social e, não raro, moram nos mesmos bairros pobres que aqueles que devem conter. E só não são as vítimas preferenciais da violência porque há um genocídio de jovens negros e pobres por parte dos traficantes, dos milicianos e das próprias forças de segurança. Sobre isso, vale ler a reportagem que fala do medo de jovens soldados ao atuarem em suas próprias comunidades.

A aplicação generalizada de ações desmedidamente duras faz com que toda uma comunidade seja vista como criminosa e tratada como tal. Enquanto isso, atuando como cães de guarda da violência estatal, comentaristas de internet que enxergam periferias e morros como uma selva sem lei rosnam contra qualquer um que aponte injustiças ocorridas durante a intervenção federal. Dizem, do alto de sua argumentação de botequim, que "quem não deve não teme". Ou, pior, invertem a lógica e sentenciam que "se teme, é porque deve algo".

A crise econômica agravou a crise de segurança. E o poder público, sem pudor algum, corresponsabiliza professores, enfermeiros e policiais pela situação econômica pela qual passa o Estado, afirmando que suas aposentadorias são inviáveis. Não explica, contudo, que qualquer país com anos seguidos de déficit é que é inviável. E se cala diante das desonerações a grandes empresas, da incapacidade de sucessivos gestores de reduzir a dependência da economia dos royalties do petróleo e, é claro, da corrupção.

Reportagem, deste domingo (25), de Idiana Tomazelli, no jornal O Estado de S. Paulo, mostra que empresas que haviam aderido ao último Refis (programa de refinanciamento de dívidas tributárias) já deram um novo calote de R$ 3,1 bilhões. Ou seja, aderiram ao refinanciamento, conseguiram uma certidão negativa de débitos e deixaram de pagar novamente as dívidas que haviam conseguido parcelar – tudo à espera de um próximo Refis. Afinal são grandes empresas, têm poder para tanto – vale lembrar que Michel Temer vetou o mesmo benefício para micro e pequenos empresários.

Outros bilhões continuam não sendo recolhidos como impostos por conta das isenções de dividendos a que os mais ricos têm direito ou das distorção da tabela do Imposto de Renda, que não permite alíquotas mais altas para quem ganha muito. Isso sem falar dos impactos negativos junto às populações mais vulneráveis da PEC do Teto dos Gastos, da Lei da Terceirização Ampla e da Reforma Trabalhista.

O que passa pela cabeça de quem faz bico para sobreviver, esfola-se no serviço até não aguentar mais com medo de engrossar a fila do seguro-desemprego, recebe um salário de fome ou depende de programas de renda mínima e que, agora, ainda por cima, passou a ser "fichado" por soldados e a ouvir seus filhos perguntarem por que os militares com armas grandes os abordaram da mesma coisa que o traficante faz, quando vê que falta dinheiro para garantir sua dignidade e segurança, mas não para fazer os mais ricos felizes?

Diante disso, a pergunta que vem do fundo da mais sincera indignação é: por que a população brasileira e, neste caso, a do Rio, não parte para a desobediência civil pura e simples? Por que obedecer ao poder público se os governos federal e estadual não contam com credibilidade e legitimidade e a administração municipal foge do povo quando chove?

Medo de ser espancado e morto pelas mãos das forças de segurança é uma resposta.

Uma maior capacidade de resiliência devido à sobreposição histórica de porrada e chicotada é outra.

Contudo, como já escrevi aqui antes, há uma sensação de desalento generalizado.

Quem apoiou a saída de Dilma, seja por conta das denúncias de corrupção em seu governo ou pelo desgosto com a grave situação econômica que ele ajudou a construir, agora sente desalento ao perceber que saiu da frigideira para cair direto no fogo. Quem não apoiou o impeachment e protestou contra sente impotência diante da profusão de denúncias de corrupção decorrentes do fisiologismo a céu aberto. E também impotente com a aprovação de uma agenda de desmonte da proteção social, trabalhista e ambiental, que não foi chancelada pela população através de eleições, e de uma intervenção federal que rasga a Constituição para se estabelecer. Quem não foi às ruas nem para apoiar a queda de Dilma, nem para defendê-la, grupo que representa a maioria da população, e assistiu bestializado pela TV ao impeachment, segue onde sempre esteve: sentindo que o país não lhe pertence. Entende que as coisas vão piorando e, quando bandidos não retiram o pouco que ele tem, o Estado faz isso. Seja roubando suas aposentadorias, seja violentando-o nas periferias e morros.

Para muita gente, o Brasil e o Rio simplesmente não valem mais a pena. Tanto que se mudariam para fora de ambos se pudessem.

Boa parte da população, aturdida com tudo o que foi descrito acima, está deixando de acreditar na coletividade e buscando construir sua vida tirando o Estado da equação. Uns contam com a ajuda dos vizinhos, outros da igreja do bairro. Vão cozinhando sua insatisfação em desalento, impotência, desgosto e cinismo. Isso não estoura em manifestações com milhões nas ruas, mas gera uma bomba-relógio que vai explodir invariavelmente em algum momento, ferindo de morte a democracia.

Talvez o tempo da indignação já tenha passado para muita gente. E, por não ter produzido frutos, abriu caminho para a desconstrução de instituições que três décadas de democracia ergueram por aqui. A busca de soluções fáceis por governos que não se preocupam com a dignidade dos mais pobres, apenas com sua própria sobrevivência, pavimentou essa estrada.

A República vai afundando. A dúvida é se a população, maltratada, vai ser irônica a ponto de bater palmas quando ela desaparecer no horizonte.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.