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Leonardo Sakamoto

Caro ministro, governo é que protege o crime com falida "guerra às drogas"

Leonardo Sakamoto

27/02/2018 16h34

Foto: Leo Correa/AP Photo

Nem bem assumiu o novo Ministério da Segurança Pública e Raul Jungmann já mostrou que, se depender dele, nada vai mudar na estrutura que sustenta o crime organizado no país.

Baseado em um raciocínio superficial (ótimo para incendiar os incautos, péssimo para construir soluções), ele responsabilizou usuários de drogas pela violência, afirmando que financiam a criminalidade.

"Pela frouxidão dos costumes, pela ausência de valores, pela ausência de capacidade de entender o que é lícito e ilícito, [pessoas da classe média] passam a consumir drogas", disse Jungmann. Nem vou me debruçar sobre "entender o que é lícito e ilícito", caso contrário levaria horas para discorrer sobre a incapacidade cognitiva do governo Michel Temer nesse quesito.

O ministro preferiu começar sua gestão à frente da área combatendo o consumo de psicoativos considerados ilegais. O que, na prática, significa enxugar gelo, pois esse tipo de ação se mostrou ineficaz na história da humanidade – sempre atrás de mecanismos para buscar estados alterados de consciência. E joga para os eleitores extremamente conservadores, que acham que a solução para as drogas é "dar porrada nos maconheiros".

Optou pela saída fácil quando deveria ter encarado de frente um tema duro, mas fundamental: o fim da política atual de "guerra às drogas", que se mostrou incapaz de combater o problema.

Ele também poderia ter tratado da legalização da produção, da distribuição e do uso de drogas, a começar pela maconha, o que funcionaria com um duro ataque ao financiamento do crime organizado e do tráfico de armas ilegais. Outra consequência seria o deslocamento da questão das drogas da esfera criminal para a da saúde pública, com prevenção e tratamento ao seu uso equivocado e compulsivo.

O combate ao tráfico gera mais mortos que o consumo de drogas – até porque a droga que, estatisticamente, mais mata e provoca mortes é legal e se chama álcool. E é uma pena que os governos, em momentos como este, não façam nenhum comentário sobre ela. Pelo contrário, os veículos de comunicação sempre tratam com deferência o homem mais rico do Brasil, que faz fortuna produzindo, distribuindo e convencendo pessoas a usarem álcool diariamente.

Você pode comprá-lo no supermercado ou ver sua propaganda na TV. Mas não é proibido, apenas regulado. Tal como o tabaco.

As maiores batalhas do tráfico sempre acontecem longe dos olhos da classe média e alta, uma vez que a imensa maioria dos corpos contabilizados é de jovens, negros, pobres, que se matam na conquista de territórios para venda de drogas, pelas leis do tráfico e pelas mãos da polícia e das milícias. Os mais ricos sentem a violência, mas o que chega neles não é nem de perto o que os mais pobres são obrigados a viver no dia a dia.

Considerando que policiais, comunidade e traficantes são de uma mesma origem social e, não raro, da mesma cor de pele, é uma batalha interna. E muita gente torce apenas não para que os conflitos voltem a ser contidos naquele território, gerando a falsa sensação de segurança na parte "civilizada" da cidade.

Em seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro do ano passado, o presidente da Colômbia Juan Manuel Santos criticou a "guerra às drogas" e defendeu que são necessários outros enfoques e novas estratégias. "É preciso entender o consumo de drogas como um assunto de saúde pública e não de política criminal", disse.

Poucos lugares como a Colômbia sabem o que significa essa guerra falida dada a quantidade de mortos que se contabiliza por lá. Santos lembrou que, enquanto houver consumo, haverá oferta – e o consumo não se proíbe por decreto. E pediu aos outros chefes de Estado que conhecessem as experiências de regulação da produção, comércio e uso de drogas que estão sendo implementadas ao redor do mundo.

Se o Uruguai, nosso vizinho que optou por essa saída, é um exemplo muito pequeno, podemos pegar o mais populoso e rico estado norte-americano, a Califórnia, com um PIB maior que o do Brasil, que legalizou a maconha. Ou Washington DC, a própria capital dos Estados Unidos. Não houve mudanças nas taxas de crime ou de consumo pelos jovens da maconha com sua legalização no Colorado, Estado norte-americano que adotou a mesma política há alguns anos. E a arrecadação de impostos aumentou significativamente.

Chegou a hora de nossos políticos pararem de viver essa ficção do autoengano, achando que podem impor uma Lei Seca como nos EUA da década de 1920. Não funcionou naquele momento e não funcionaria de novo.

No intuito de combater o crime organizado, estamos matando milhares de pessoas todos os anos – a maioria, moradoras de áreas pobres, policiais ou traficantes – e jogando a responsabilidade nos consumidores. O poder público, que torna todo esse cenário possível, segue em uma realidade paralela, fazendo de conta que a culpa não é dele.

Um dia ainda descubro o que esse povo usa para dizer certas coisas com esse nível de tranquilidade, sem piscar.

Assista à declaração do ministro:

Jungmann liga morador do Rio a auxílio ao crime

UOL Notícias

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.