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Leonardo Sakamoto

Dez pessoas são mortas no Rio. "Mas tudo bem, foi na favela da Rocinha"

Leonardo Sakamoto

25/03/2018 13h36

Um morador da Rocinha e um PM foram mortos, na quarta, após um tiroteio entre traficantes e policiais. Três dias depois, na manhã deste sábado, uma operação terminou com seis mortos na comunidade. E, no começo da tarde, foram deixados mais dois corpos em uma passarela.

O governo afirma que eram criminosos que entraram em confronto com a polícia. Moradores apontam que os agentes de segurança atiraram indiscriminadamente contra quem saía de um baile funk, incluindo quem não tinha nada a ver com a história. Um pai reclamou que seu filho de 19 anos foi morto com uma bala nas costas apenas por estar na festa.

Pouco importa quem eram. Foram mortas, pelo menos, dez pessoas de forma violenta em um único bairro num espaço de três dias. E a vida segue, no restante do país, como se fosse mais uma atração do Lollapalooza. Até porque ocorreu em uma comunidade pobre, não no Rio de Janeiro.

O Rio está sob intervenção federal comandada pela Forças Armadas, desde fevereiro, como parte de um plano de marketing político e eleitoral de Michel Temer. Segundo pesquisa Datafolha, divulgada neste domingo (25), apesar da maioria da população apoiar a ação (76%), ela ainda não sentiu diferença em sua vida cotidiana (71%).

De setembro até agora, por conta das brigas entre facções e pela ação da PM, já foram mais de 50 mortos na Rocinha. A maioria de jovens e negros.

Dados obtido pelo UOL através da Lei de Acesso à Informação, no passado, apontou que nove entre cada dez pessoas mortas pela polícia no Estado do Rio de Janeiro são negras e pardas. A maioria, da periferia. Metade delas, com até 29 anos. Enquanto isso, o Atlas da Violência 2017, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) junto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, havia mostrado que o homem, jovem, negro e com baixa escolaridade é o principal perfil das vítimas fatais dos 59.080 homicídios foram registrados no país em 2015 (contra 48.136, dez anos antes).

A violência avançou contra negros entre 2005 e 2015: houve um crescimento de 18,2% na taxa de homicídios de negros, enquanto a de não negros diminuiu 12,2%. O relatório mostra que a violência também aumentou contra mulheres negras: Enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras diminuiu 7,4%, entre 2005 e 2015, o indicador equivalente para as mulheres negras aumentou 22%.

Diante das declarações do pai que teve seu filho morto, e antes mesmo de qualquer investigação que aponte que o rapaz estava ou não em confronto armado com a polícia, a filosofia de botequim do brasileiro já o jogou na vala comum dos "culpados".

A rede foi inundada de razões irracionais: "se a polícia matou é porque algum crime ele deve ter cometido". Ou "morreu porque estava no lugar errado, baile funk não é lugar para gente honesta". Quase perdi a visão de tanto ler a frase "Tem que matar vagabundo mesmo" correndo nas caixas de comentários.

Na verdade, se parassem para usar dois neurônios, parte dos autointitulados "cidadãos de bem" chegariam à conclusão de que alguma coisa está muito errada em um país em que, em apenas uma comunidade, mais de 50 pessoas são mortas de forma violenta em poucos meses. E que essa esmagadora maioria de cadáveres seja de um mesmo grupo: negro, jovem e pobre, sejam eles criminosos, moradores ou policiais. É claro que não há ordens diretas para metralhar todos os jovens negros e pobres da periferia dados pelo comando do poder público. Mas nem precisaria.

Quem controla a política e a economia coloca esse grupo nas categorias de "matáveis" e "descartáveis". A disputa, no final do dia, é para saber quem se encaixa no quê. Uma batalha interna de vivos-mortos pelos quais pouca gente fora das comunidades irá prantear.

As batalhas do tráfico sempre aconteceram longe dos olhos da classe alta, uma vez que a imensa maioria dos corpos contabilizados sempre é desses jovens, negros, pobres, que se matam na conquista de territórios para venda de drogas, pelas leis do tráfico e pelas mãos da polícia e das milícias. Os mais ricos sentem a violência, mas o que chega neles não é nem de perto o que os mais pobres são obrigados a viver no dia a dia. Mesmo no pau que está comendo no Rio, sabemos que a maioria dos mortos não é de moradores da orla, da Lagoa ou da Leblon.

Policiais não são monstros alterados por radiação para serem insensíveis ao ser humano. Não é da natureza da maioria das pessoas que decide vestir farda tornar-se violenta. Elas aprendem a agir assim. No cotidiano da instituição a que pertencem (e sua natureza mal resolvida), na formação profissional que tiveram, na exploração diária como trabalhadores e na internalização de sua principal missão: manter a ordem (e o status quo) a qualquer preço. Esse problema não se resolve apenas com aulas de direitos humanos e sim com uma revisão sobre o papel e os métodos da polícia em nossa sociedade. A  maioria dos policiais é honesta, mas está acossada por corruptos e milicianos.

Ao se criticar essas mortes pelas mãos do Estado, não defendemos "bandido", mas sim o pacto que os membros da sociedade fizeram entre si para poderem conviver em harmonia.

A forma como o tráfico de drogas se organizou e a política estúpida adotada pelo poder público para combatê-lo estão entre as principais razões desse conflito armado organizado. Essas mortes não vão parar a menos que ela seja revista, urgentemente.

A questão é que, se o Brasil um dia perceber que a "guerra às drogas" joga combustível no fogo ao invés de controlá-lo e resolver mudar sua política, um excelente instrumento de controle das classes mais baixas estará perdido. A partir dai, qual seria a justificativa para entrar e botar ordem na comunidade? Ou para limpar o terreno a fim de garantir a alegria da especulação imobiliária, que sobe o morro no Rio? E como políticos e policiais corruptos e milicianos levarão o seu? Procurar o grande traficante que está à beira mar, nem pensar, ele é amigo e paga bem.

Melhor deixar tudo como está, então. Afinal, é negro e pobre morrendo. Quem vai sentir sua falta? O Brasil?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.