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Leonardo Sakamoto

Uma sociedade que ataca repórteres na rua é doente e precisa se tratar

Leonardo Sakamoto

08/04/2018 22h11

Fotojornalista André Lucas Almeida foi agredido por policial enquanto cobria protesto em São Paulo em 2016

As agressões contra repórteres, fotógrafos e cinegrafistas que cobriram os atos contra a prisão de Lula ou os tiros ao ônibus com jornalistas que acompanhavam a caravana do ex-presidente na região Sul são os capítulos mais recentes de uma longa lista de violência a profissionais da imprensa.

Mas, por mais toscos, ignóbeis e deploráveis que sejam, esses atos não são, nem de perto, os mais violentos. Temos visto colegas assassinados em grandes cidades ou no interior do país, outros permanecendo sob contínua ameaça de morte. Há aqueles difamados, processados e abandonados por seus empregadores, sem contar os que têm a vida transformada em um inferno para que deixem de lado apurações por pressão dos poderes político ou econômico.

Sim, o Brasil é um dos piores lugares para um jornalista exercer sua profissão de acordo com organizações que sistematizam e analisam casos de violência, como a Repórteres Sem Fronteiras e a Artigo 19.

A situação, que já era trágica, piorou consideravelmente nos últimos cinco anos. Nas jornadas de junho de 2013 e, principalmente, após as hiperpolarizadas eleições presidenciais de 2014, profissionais de imprensa passaram a ser hostilizados em manifestações a favor e contra o impeachment de Dilma Rousseff. Normalmente, repórteres de texto e rádio, além de fotógrafos e veículos da mídia independente eram atacados em atos pró-impeachment e jornalistas de TV e suas equipes eram atacados em atos anti-impeachment.

Lembramos da absurda morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido por um rojão disparado em uma manifestação, no Rio, em 2014. Mas esquecemos que determinados grupos sociais, sentindo-se empoderados pela conjuntura política, estão apertando o gatilho com mais frequência contra jornalistas no interior do país. De blogueiros a radialistas, são vários os que tombam e permanecem anônimos.

Parte das instituições do Estado brasileiro não dá a mínima se um jornalista é ferido ou morto. Pelo contrário, levantamentos da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) mostram que a maior parte dos casos de violência em manifestações, nos últimos anos, foram levados a cabo por policiais, que sabiam muito bem o que estavam fazendo, uma vez que o profissional de imprensa estava devidamente identificado como tal. Atuaram dessa forma, objetivamente, para censurar o jornalista e impedir a livre circulação de informações.

Tive a sorte de trabalhar para veículos de comunicação que sempre me deram apoio e respaldo, ou seja, tranquilidade, para que eu realizasse meu trabalho. Mas muitos colegas não contam com esse direito trabalhista mínimo garantido e, quando vão à rua ou ao campo cobrir uma pauta, sabem que estão por conta própria. O máximo que acontecerá, se forem agredidos, é que o veículo para o qual trabalham usará a imagem dele ferido a fim de comprovar alguma tese. Nada de garantir, contudo, medidas de proteção (que vão muito além de capacetes e coletes – afinal ninguém sai vestido para guerra para fazer jornalismo investigativo sobre um grande grupo político ou para desbaratar uma rede de tráfico de pessoas) ou pagar pela reparação do dano causado durante o serviço.

Além disso, parte da sociedade não entende um ataque a um repórter como um soco na liberdade de expressão, um pilar da democracia. Vê isso como uma manifestação do descontentamento ao estado das coisas. Incendiada por conteúdos superficiais distribuídos principalmente pelas redes sociais e não acostumada ao debate público de ideias, à aceitação da diferença de opinião e à empatia pelo outro, pessoas partem para a ignorância. Cedem aos discursos fáceis e toscos.

Fotográfo do Estadão é atingido por ovos por manifestantes da CUT no protesto contra prisão de Lula no último dia 5. Foto: Denis Maciel/Diário do Grande ABC

A imprensa, como qualquer outro ator social, pode e deve ser criticada, mas isso não deve descambar nunca para ataques e violência. Jogar pedras contra o prédio de uma redação ou atacar repórteres é estúpido e não aceitável sob nenhuma hipótese e esses atos deveriam ser repudiados da mesma forma que nos indignamos contra a violência a manifestantes. A personificação em uma pessoa do descontentamento contra uma cobertura, uma opinião editorial ou a situação da economia e da política como um todo é uma idiotice sem tamanho e inadmissível.

Seria importante, portanto, que não apenas a sociedade, mas também o poder público e as empresas cuidassem da integridade e da vida dos jornalistas. Caso contrário, podemos passar a acreditar que nosso sangue serve apenas para garantir audiência.

Punir os responsáveis é preciso e fundamental, seja quem for. Incluindo punir quem incita a violência contra repórteres, quem quer que seja, da esquerda à direita.

O ataque à impunidade sozinho, contudo, não vai resolver a questão de como a imprensa é vista ou tratada, pela sociedade ou pelo Estado. Para isso, precisamos ampliar o debate público sobre a importância e o papel do próprio jornalismo. As mudanças tecnológicas que tiraram do jornalista convencional o monopólio da mediação da circulação de notícias e criaram estruturas de difusão que não dependem de profissionais, se – por um lado – abriram oportunidades únicas para a democratização da comunicação, por outro, também criaram enormes desafios. Os donos de empresas e estrategistas de comunicação que negam essas mudanças correm felizes para o precipício.

A pulverização de sites e páginas anônimos que se escondem em pseudônimos e não dão a cara a bater, pertencentes a grupos que não se importam em ter sua reputação questionada, tem contribuído para a formação incompleta ou deturpada de uma quantidade significativa de pessoas. Parte da sociedade que se informa apenas por contas de redes sociais vinculadas a alguns desses sites anônimos passou a interpretar o mundo de uma forma, não raro, mais polarizada e agressiva. Piorando a polarização que já temos à disposição.

A diferença entre um grupo que se apresenta de forma anônima e outro que tem endereço físico, telefone e nome de responsável legal que exista de verdade, é que o segundo grupo pode ser processado caso tenha difamado, caluniado ou injuriado alguém. E isso faz toda a diferença.

A população deve entender a importância de um debate em que possamos enxergar os rostos de quem nos critica, tendo o direito de responder a eles. Uma coisa são coberturas ruins ou com interesses questionáveis. Outra é um país em que a imprensa foi suplantada por um sistema de contas e sites sem identificação dos responsáveis, voltados à desinformação, manipulação, hiperpartidarização de conteúdoso e notícias falsas.

Seguimos um caminho perigoso. Se nossa categoria se visse como trabalhadora, já teria cruzado os braços diante da percepção de que veremos (mais) colegas sendo mortos até as eleições em outubro. Mas acho que nos enxergamos como outra coisa – um erro que pode nos custar caro demais.

Em tempo: Também cometemos outros tipos de violência contra nossos colegas diariamente. Ao ficarmos calados diante de ataques verbais cometidos por políticos que se dizem o novo, mas cheiram a naftalina ao caçar a liberdade de expressão. Ou quando, diante da organização das jornalistas contra o assédio em coberturas, rimos e chamamos isso de "coisa de feminazi". Ou ainda, ao vermos colegas sendo demitidos, não nos organizarmos para exigir da chefia explicações técnicas e financeiras para o que está acontecendo mas, pelo contrário, nos afundamos o mais baixo possível em nossas baias, torcendo para não sermos vistos nessa vez.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.