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Leonardo Sakamoto

Primeiro, a gente tira a Dilma e o PT. Depois... relaxa que o país é nosso

Leonardo Sakamoto

13/04/2018 20h16

Foto: Marcos Corrêa/PR

A Justiça no Brasil sempre foi seletiva. Sua velocidade, por exemplo, depende de quem são os réus, seu pedigree e conta bancária. Pode ser mais rápida ou mais lenta de acordo com a necessidade. E mais ou menos condescendente também.

Se for pobre e negro, está lascado. Por outro lado, ricos e brancos têm mais chances de ter uma interpretação da lei que os favoreçam. Seja porque têm mais recursos para gastar em sua defesa, seja porque sua rede de proteção é maior e alcança as pessoas certas. Isso sem contar as preferências político-ideológicas em comum – afinal de contas, o Poder Judiciário não está desconectado do tecido social para ser imune a ele.

Muito pelo contrário. Se há magistrados comprometidos com os direitos fundamentais, há outros comprometidos com sua própria classe.

O Superior Tribunal de Justiça salvou o pescoço de Geraldo Alckmin das mãos da Operação Lava Jato, enviando seu processo para a Justiça Eleitoral após ele ter perdido o foro privilegiado com sua renúncia ao governo paulista para disputar a Presidência da República. Questionado, o vice-procurador-geral da República, Luciano Mariz Maia, afirmou que a delação da Odebrecht só tinha elementos para questionar Alckmin por crime eleitoral (Caixa 2) e não corrupção passiva.

Pode ser. Mas por muito menos que isso, cardeais petistas tornam-se réus. Além disso, o histórico das investigações recentes no país mostra que há um tratamento diferenciado para cardeais tucanos em detrimento a membros de outros partidos. Natural, portanto, a estranheza sobre o encaminhamento do caso para a primeira instância eleitoral, ainda mais um processo sob o manto do sigilo.

Apesar de corrupção não ser monopólio de determinada agremiação ou governo e ser um problema estrutural, a Justiça parece estar se esforçado em nos convencer do contrário. E pelo comportamento virulento de certos internautas, que acham que o país se tornou a Terra Prometida após a prisão de Lula, com leite e mel correndo pelo meio-fio de grandes avenidas, creio que é essa imagem que está colando para uma parte da população. Daqui a pouco, todos se darão por satisfeitos e os trabalhos da Lava Jato serão encerrados.

Mas a Justiça também pode ser seletiva com ela mesmo. Como é o caso de casais de juízes que acumulam auxílio-moradia, como o juiz Marcelo Bretas, responsável pela Lava Jato no Rio e sua companheira. Vale ressaltar que ele não recebeu isso automaticamente. Teve que correr atrás e lutar pelo que afirma ser um direito seu.

Falando em previsão de direitos, o artigo 7º, inciso IV, da Constituição Federal prevê que o salário mínimo pago a um trabalhador seja "capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e Previdência Social". E seja "reajustado periodicamente, de modo a preservar o poder aquisitivo, vedada sua vinculação para qualquer fim". Porém, se um morador de São José da Tapera, nos sertão de Alagoas, pedir à Justiça que o seu salário-mínimo atenda tudo isso aí será encaminhado para tratamento de demência.

O curioso é que, enquanto a maior parte das postagens nas redes sociais mostrava indignação pelo privilégio dobrado do magistrado, muitos defendiam a graça alcançada afirmando que os juízes da Lava Jato podem ter o que quiserem por "trazerem moralidade ao país".

Cidadãos que afirmam lutar contra a corrupção deveriam ser os primeiros a ir contra privilégios pagos com recursos públicos. Mas parte da sociedade não se importa e defende que deva existir uma casta diferenciada formada por pessoas que conquistaram o direito de terem privilégios perante a lei.

Isso, quando toca o chão da vida cotidiana, reforça aberrações.

Qualquer resquício de pudor vindo de pessoas que já se sentiam superiores às demais, por sua classe social, cor de pele, etnia desaparece.

O trânsito, espaço de contato de diferentes grupos que, caso contrário, nunca trombariam, confirma essa hipótese.

Um carro que deve custar o mesmo que o apartamento em que moro parou em frente à garagem do prédio para sua dona fazer compras na loja à frente. Diante da reclamação, ficou irritada. Afinal, por que não podíamos esperá-la só por uns minutos? Li quatro histórias semelhantes a essa na última semana. Sempre com alguém que, em sua cabeça, acreditava que o país existe para servi-lo. E, nos relatos, os que não conseguiam entender isso e questionavam ou eram tratados como burros ou como subversivos que precisam serem colocados em seus devidos lugares.

Se até a Justiça considera que existem algumas pessoas que estão acima do restante de nós, por que quem tem um pouco a mais na conta bancária deve manter as aparências? Mandando às favas os escrúpulos, o sujeito que se sente diferenciado, diante de uma réplica, estufa o peito e, sem medo do ridículo, solta um "você sabe com quem está falando?". Frase que é uma herança de um Brasil dividido entre aqueles feitos para servir e os que nascem para serem servidos.

A "faxina" promovida pelo combate à corrupção não atingiu todo o espectro partidário envolvido em denúncias. Diante do fato de que até uma morsa com problemas de visão devido à falta de vitaminas consegue perceber isso, quem diz que "a lei é para todos" ou é mal informado ou age de má fé.

Sabe aquela história de "primeiro, a gente tira a Dilma, depois tira o resto?" Mentira. E muitos caíram nela. Feito patinhos que seguiam um patão amarelo.

Instituições foram esgarçadas para que o impeachment coubesse nas necessidades do poder econômico e da velha política. E seguem sendo esgarçadas quando a dureza da lei é aplicada apenas a um lado da história, enquanto o outro continua fazendo o que quer. Mas agora com a sensação de liberdade plena lambendo suas faces.

Com o aprofundamento do esgarçamento, pagamos todos o preço do clima de desrespeito a leis e regras com o consequente "foda-se" a tudo aquilo que nos une como um país.

E como o naco brasileiro que não nasceu em berço de ouro responde a isso? Há aqueles cujo desejo é ser igual aos líderes políticos, judiciais e econômicos que idolatram. Esses seguem guerreiros de uma realidade que não é sua, torcendo para um dia "chegarem lá". E, enquanto isso, mostram todos os dentes a quem questiona seus mestres.

O restante cultiva desalento, impotência, desgosto e cinismo. Isso não estoura em manifestações com milhões nas ruas, mas gera uma bomba-relógio que vai explodir invariavelmente em algum momento, ferindo de morte a democracia. Pois caídas em descrença, instituições levam décadas para se reerguer – quando conseguem. No meio desse vácuo, surge a oportunidade que, dentre os semoventes que se consideram acima das leis, alguns se apresentem como a saída para os nossos problemas. Como salvadores da pátria.

A triste constatação, ao fim de tudo isso, é que a pátria precisa ser salva dos salvadores da pátria.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.