"Minha ditadura matou, mas a sua também" é prova da falência da razão
Tenho uma atração mórbida por colecionar comentários que demonstram a incapacidade das pessoas em desenvolver um debate baseado em evidências sólidas nas redes sociais. Sei que isso não é saudável, mas todos temos vícios questionáveis, como fumar tabaco, assistir TV até altas horas da madrugada ou comer Cheetos num ônibus abafado com janelas fechadas.
Um tipo de comentário em especial remete à minha infância: quando acusávamos o coleguinha de algo e ele, prontamente, respondia "mas fulano de tal também". Como fôssemos os responsáveis pelas besteiras do fulano de tal.
Isso é equivalente a alguém apresentar dados sobre pessoas executadas por ordem do alto comando da ditadura brasileira (1964-1985) e, ao invés de receber um questionamento sobre a fonte da informação e sua veracidade ou argumentos que tentem justificar as mortes (se é que isso é possível), ler ou ouvir um "mas fulano de tal também".
O raciocínio (sic) é o seguinte: se a ditadura brasileira matou, mas ditaduras comunistas e socialistas também mataram, então ninguém pode falar nada a respeito sob risco de hipocrisia. Isso embute farsas argumentativas. Primeiro, quem se diz de esquerda não compactua necessariamente com o que governos que se dizem de esquerda fazem ou dizem. Esquerda e direita são campos extremamente plurais e a esquerda tem dificuldade até para chegar em um consenso na forma de dar bom dia.
Ao mesmo tempo, isso passa pelo pressuposto equivocado de que um ato ao se equiparar ao outro mostra que todo são iguais para tentar inviabilizar a crítica. Essa justificativa tenta calar os que criticam a celebração da memória de um regime autoritário, aqui no Brasil, que perseguiu, torturou, matou, esquartejou, queimou, jogou ao mar. Celebração feita por pessoas que, hoje, desejam um Estado que propague a violência para garantir a paz. Na verdade, há espaço para criticar todas as ditaduras violentas.
Essa falta de maturidade é típica de um país que ainda engatinha quanto à pluralidade do debate público e vive em meio à herança não-resolvida do seu próprio período autoritário. O que me lembra o velho paradoxo das pessoas que querem usar sua liberdade de expressão para exigir que determinadas minorias não tenham liberdade de expressão, como era na época da ditadura. Não faz sentido. Mas tampouco comer Cheetos faz.
Governos que se autointitulavam socialistas ou comunistas mataram milhões. Do Khmer Vermelho, no Camboja, aos expurgos de Stalin, na União Soviética, passando pelos fuzilamentos na China ou em Cuba, a História é farta em registrar o que esses grupos fizeram em nome de suas revoluções ou da perpetuação de poder. Parte da esquerda faz essa crítica e não deseja copiar nenhum desses regimes. Da mesma forma, a História é rica ao demonstrar as montanhas de mortos em decorrência da ação colonialista de países europeus na América Latina, África e Ásia. Sem falar dos milhões que morreram em decorrência das políticas de expansão do Estado norte-americano ao redor do mundo ou das grandes corporações.
Já tratei desses assuntos muitas vezes, mas para boa parte dos que vivem em função da intolerância online, o que já foi dito, não importa. Se a cada postagem sobre a ditadura brasileira você não fizer uma retomada histórica de 200 anos das mortes ocorridas após o nascimento de Karl Marx, torna-se um mentiroso seletivo e hipócrita. Se a cada postagem, não reafirmar que considera o governo Maduro, na Venezuela, autoritário e violento, seu pensamento não vale. Pois, no fundo, as pessoas não querem que você diga nada além do lado da história com a qual concordam.
Isso deságua mais do que na terceirização do pensamento e da reflexão. Leva à indigência intelectual que, ao atingir o fundo do poço, faz com que o ódio flua livremente pelo corpo sem os incômodos entraves impostos pela razão. Você se torna uma casca vazia e, o melhor, sem se sentir culpado por disso.
O caso da divulgação do memorando da CIA sobre as execuções sumárias autorizadas pela cúpula da ditadura, descoberto pelo professor Matias Spektor, da FGV-SP, ganhou repercussão nesta quinta (10). Ilustrei meu texto sobre o tema com uma foto do corpo do jornalista Vladimir Herzog, pendurado pelo pescoço nas dependências do Exército, em 1975. Na época, o governo afirmou que ele havia se suicidado. Mas a foto forjada pela ditadura não convenceu parte da sociedade civil e a morte de Vlado, que trabalhava na TV Cultura, serviu para mostrar à população o destino de quem discordava do regime. Pois a ditadura, do alto de sua covardia violenta, nunca assumiu o que fazia entre quatro paredes.
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Nas redes sociais, nesta quinta (11), a imagem de Vlado passou a ser usada para tentar convencer – com uma argumentação sem bases racionais – que a foto teria sido forjada pelos opositores para criar problemas para o governo militar. Não importam as provas e o fato do caso ser reconhecido internacionalmente, para muita gente a morte do jornalista – que havia se apresentado voluntariamente a fim de prestar esclarecimentos sobre denúncias contra ele – é uma farsa porque atrapalha a narrativa reluzente da Gloriosa. O que vai ao encontro da máxima das redes sociais: "Verdade é tudo aquilo com o qual concordo e mentira, tudo da qual discordo".
Em março de 2013, os familiares de Herzog receberam novo atestado de óbito, trazendo como causa da morte "lesões e maus-tratos sofridos durante o interrogatório nas dependências do segundo Exército DOI-Codi" por determinação da Justiça paulista. No documento anterior, forjado pelo médico da ditadura, aparecia "enforcamento por asfixia mecânica".
O problema é que, muito provavelmente, se você leu até aqui este post, já exerce um debate plural de ideias, independente de concordar comigo ou não. Afinal, seja à esquerda ou à direita, muitos não ficam satisfeitos com uma informação reduzida a uma tuíte porque não estão recolhendo munições para sua guerra digital. Querem ouvir versões e entender a complexidade do mundo à sua volta.
O que só confirma que estamos nos aproximando de outubro cavalgando em burrice violenta, como já disse aqui. Entendo por burrice não a falta de um conhecimento específico. Burro não é quem separa sujeito e predicado por vírgula ou quem não sabe calcular. Muita gente não entende isso e desvaloriza a opinião do outro por não compartilhar dos mesmos padrões de fala ou do mesmo universo simbólico. Burro é quem menospreza o conhecimento, chegando a odiar quem o detém ou quem busca aprendizado para ampliar sua visão de mundo.
O sujeito da burrice é prepotente e apressado, que xinga um texto ou vídeo na rede sem ter consumido nada além de seu título ou visto o nome do autor ou autora. E, diante das críticas sobre a superficialidade desse comportamento, rosna, dizendo que tudo o que é importante pode ser escrito em uma linha. Ou acredita que um produto é ruim simplesmente por não ter ido com a cara do rótulo. O burro é aquele que vê seu preconceito violento como sabedoria.
A burrice sempre tenta destruir o conhecimento que ameaça jogar luz sobre ela própria. Pois a burrice é incapaz de aceitar o próprio erro, transferindo a culpa para o outro ou equiparando o interlocutor a ela para poder fugir de sua falta de consistência. Ou, diante de um questionamento, foge da autocrítica, dizendo que outra pessoa ou partido também faz a mesma coisa. A burrice não pede desculpa. Pois a burrice de um indivíduo acha que é absolvida pela burrice de outro indivíduo ou do coletivo.
A burrice não aceita a existência de outra versão que interprete os fatos além da sua. É incapaz de reafirmar sua visão e, ao mesmo tempo, conviver com análises divergentes. Enxerga a opinião alheia como "notícia falsa" não por desconhecer a diferença entre formatos de textos narrativos e opinativos, mas por não admitir o conteúdo. A burrice de alguns seguidores de políticos que não aceitam a existência de divergências ocorre da direita à esquerda, ou seja, não é monopólio de ninguém.
"A ditadura não executava opositores" é uma variação da "Terra é plana". Em ambos os casos, há muito já se deixou o campo da razão. É crença.
E a história mostra que as pessoas matam e morrem por suas crenças, sejam elas quais forem.
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