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Leonardo Sakamoto

Com organização via WhatsApp, caminhoneiros atropelam acordo com Temer

Leonardo Sakamoto

25/05/2018 10h57

Caminhoneiros bloqueiam estrada no Rio de Janeiro. Foto: Mauro Pimentel/AFP

Uma parcela dos caminhoneiros autônomos não se sente representada pelo acordo firmado por alguns representantes da categoria e o governo federal nesta quinta (24). Nas listas de WhatsApp que reúnem esses profissionais (e que tiveram papel fundamental na eclosão da paralisação), há muita insatisfação e revolta.

Muitos acham que o acordo beneficia mais as empresas de transporte de cargas e não os autônomos. E demandam a redução "de verdade" no preço do diesel, seja pela Petrobras, pela via queda da incidência do PIS/Cofins pelo governo federal ou por qualquer outro caminho. E também a queda no valor dos pedágios e a garantia de estabilidade no repasse de flutuações de alta do preço internacional do diesel (que aumentam o custo do frete e reduzem a margem de lucro durante um serviço já contratado) para além dos 30 dias prometidos pelo governo.

A pauta básica é, portanto, redução dos custos. Pois, com o que sobra, segundo os caminhoneiros, não é possível manter a dignidade que ficou mais cara (quem diz que o custo de vida não aumentou, não depende de salário) e mais difícil (com o crescimento da concorrência, pela expansão das frotas). Claro que donos de frota tentaram se aproveitar do movimento dos caminhoneiros. Mas ignorar que há uma greve não é apenas equivocado, mas arriscado. Há insatisfação real, cozida em diversas instâncias da vida desses profissionais, canalizada na única forma que conhecem: parando de dirigir.

A paralisação, que atinge seu quinto dia, começou com o descontentamento de autônomos. Depois passou também a ser apoiada por parte das empresas de transporte de cargas, que se aproveitaram do momento para tentar sequestrar a pauta. Como já escrevi aqui ontem, há uma greve legítima de trabalhadores junto a um locaute de algumas empresas interessadas no corte de custos e aumento de lucros. Lembrando que "greve de patrões" é algo ilegal que deveria ser combatido pelo governo, se governo houvesse.

Resta saber o tamanho do movimento real de caminhoneiros autônomos, que congregam mais de um terço da frota do país, em greve. Mesmo sem a participação de empresas de frete (que também têm interesse na redução do diesel), eles são capazes de bloquear pontos estratégicos de escoamento de produtos nas rodovias ao contrário do que apontam alguns analistas. Não são necessários muitos caminhões parados para tornar a vida do país um inferno. Mais importante é um número suficiente de caminhoneiros tanto para evitar que colegas furem os piquetes quanto para se protegerem diante de uma tentativa de desocupação forçada por parte da polícia.

Papel da redes sociais

Nas listas de WhatsApp, nesta madrugada de sexta, circularam mensagens irritadas, afirmando que o acordo fechado não representa o movimento e chamando instituições que participaram dele de traidoras (nem todos os sindicatos e associações endossoram-no). Conversei com caminhoneiros, por telefone, que me leram algumas delas. Como diria a suposta declaração de Garrincha frente ao planejamento teórico do técnico Feola, antes do jogo com a União Soviética, na Copa de 1958, faltou o governo combinar com os russos.

A possibilidade de conexão de trabalhadores através de serviços de mensagens instantâneas coloca em cheque a própria ideia de representatividade e dificulta o estabelecimento de acordos da forma tradicional, entre associações patronais, sindicatos e governos. Com isso, acordos não são mais debatidos apenas em assembleias, com presença de uma parcela da categoria decidindo pelos demais. Todos podem dar sua opinião – dos que querem buscar uma solução rápida àqueles que desejam ver o circo pegar fogo para desestabilizar (mais ainda) o governo e, quiçá, ajudar seu candidato. Quem é capaz de fomentar, organizar e sintetizar, mas também induzir e manipular, o que é discutido nos diferentes grupos tem grande poder nas mãos, pois constrói a "opinião" de uma categoria.

Quando o ex-prefeito do Rio Eduardo Paes fechou um acordo com o sindicato dos garis em greve, em 2014, acreditava estar botando um ponto final no acúmulo do lixo nas ruas da cidade após o carnaval. Os trabalhadores não se reconheceram no acordo (que era mesmo ruim frente à situação social dos garis) e seguiram a pressão até conseguirem o que queriam. A situação, claro, é bem diferente naquele e neste momento, seja pela participação ilegal de donos de empresas e pelo contexto. Mas a lacuna de representatividade é sentida não apenas entre cidadãos e os parlamentos, mas entre quem diz representar interesses de trabalhadores e os trabalhadores. Ou mesmo associações de patrões e as empresas em si.

E enquanto a representatividade não é reinventada, seja com a substituição de instituições sindicais desconectadas do interesse de seus representados, seja por ignorar novas formas de envolvimento dos trabalhadores, acordos como esse são atropelados. Melhor sorte tiveram os sindicatos que rechaçaram a proposta e não a endossaram.

Caminhoneiros fazem protesto na BR-324, na Bahia. Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Por fim, movimentos que nascem de descontentamento de um grupo cozido na internet podem até começar de um jeito, mas terminam de outro totalmente diferente. Porque podem funcionar como catalisadores de outras insatisfações que já estavam por aí, apesar de não aparecerem em público. Ao mesmo tempo, grupos que não estão envolvidos na pauta original podem agir para ressignificar movimentos, utilizando-os para fortalecer seus próprios interesses.

Algumas pessoas utilizam o próprio WhatsApp para promover paranoia, conspiração e caos (seja por sociopatia, seja para cumprir sua pauta), como é possível ver pelos boatos de desabastecimento e de golpe militar que circulam por conta da greve. Esse cenário surge porque há terreno fértil para tanto. Neste caso, menos culpa das redes sociais e de falhas na educação formal do brasileiro. E mais de um governo fraco e incompetente, que já provou estar mais sintonizado ao poder econômico do que às necessidades da população, incapaz de mediar conflitos e sem legitimidade para fazer valer a lei. Esse governo permite, por sua inoperância, lacunas que são preenchidas por quem vive de explorar o medo.

E, principalmente, um governo que teme irritar o mercado e rediscutir a política de preço da Petrobras. Como empresa de capital misto, ela não tem o objetivo apenas de levar lucro aos seus acionistas, mas de fomentar o desenvolvimento social brasileiro. O governo entregou a empresa ao mercado e, agora, não consegue rediscutir o equilíbrio entre ambas as funções. E, com isso, apresenta soluções que vão impactar o restante da população, tirando dinheiro de onde não há.

Quem vai perder é educação, saúde e segurança públicas, que sofrerão mais cortes. Mas tudo bem, porque não são áreas prioritárias pela ótica do governo, como já havia sido afirmado pela proposição da PEC do Teto dos Gastos – que congelou, por 20 anos, novos investimentos públicos. A prioridade é Michel Temer conseguir chegar ao final do ano.

Diante da crescente insatisfação popular e da possibilidade de envolvimento de outras categorias, quanto mais greve durar, mais difícil será a tarefa do presidente.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.